quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

fast forward

Ontem dona Alice e eu fomos à festa de aniversário de 80 anos (81, segundo o calendário chinês) de um tio-avô. A festa foi uma ocasião quase de gala, terno e gravata, tafetá e salto alto, e inúmeros parentes vindo do exterior para prestigiar. Três gerações lotavam o salão do restaurante chinês mais caro de São Paulo.
A festa aconteceu nos moldes chineses: muitas fotos, muitos discursos, brindes emocionados, muita comida e microfone aberto para karaokê. Mas com o usual rigor e formalidade asiáticos, ninguém contava com homenagens tão sinceras, nem com demonstrações de carinho tão genuínas quanto as presenciadas na noite de ontem.
A primeira delas foi um pequeno filme, montado a partir de fotos, antigas e recentes, da trajetória de meu tio-avô: a vida em Taiwan; a mudança para o Brasil com cinco filhos, a caçula ainda no colo; o começo da vida no novo país, primeiro com uma floricultura, depois com um bazar; os filhos crescidos, depois os netos; as viagens, as festas, os parentes, os amigos. Enquanto o filme passava no telão, notei que que dona Alice, assim como eu, estava com os olhos marejados. Ao olhar ao redor, vi que outras pessoas também enxugavam, disfarçadamente, os olhos úmidos. Aquela história era, de certa forma, a história de todos nós.
A segunda homenagem foi uma música chamada "Coração Grato" (Gan En De Xin), cantada a plenos pulmões, e em meio a muitas lágrimas, por filhos, netos e agregados, acompanhados baixinho pelos convidados, inclusive dona Alice. Ao final da música, os cinco filhos, emocionados, abraçaram o pai. O octagenário reagiu como qualquer pai chinês da velha guarda pouco habituado a arroubos afetivos: um sorriso sem graça, um abraço rápido e um tapinha nas costas.
Para dona Alice, a festa foi uma espécie de fast-forward de sua vida daqui 20 anos. Hoje com 60 anos, uma de suas maiores preocupações é a velhice. Viúva, tem medo de ficar sozinha num país que não é seu. Tem medo de ser abandonada num asilo pelos filhos. Seu plano, que relata num tom de brincadeira mas que tem um quê de verdade, é contratar Cema, a balconista que já é quase da família, para cuidar dela quando ficar velhinha.
Mas ontem à noite, ao assistir, emocionada, as cenas que se desenrolavam à nossa frente, dona Alice viu que o futuro e a velhice podem não ser tão assustadores. Meu tio-avô, como ela, também atravessou oceanos, fez a vida com um bazar, criou filhos e estava envelhecendo num país estrangeiro. E lá estava ele, aos 80 anos, saudável, cercado de amigos e família, dono de uma vida intensa e feliz. Talvez um sinal de que, pelo menos pelos próximos 20 anos, dona Alice não tem com que se preocupar.

domingo, 19 de dezembro de 2010

dezembro(s)

Dezembro é um mês memorável para toda uma geração de adolescentes do Campo Belo. Com o frenesi de Natal, a única balconista que minha mãe mantinha o ano todo não dava conta do movimento e era preciso contratar uma legião de ajudantes - adolescentes em férias, a maioria do bairro, que queriam complementar a mesada com um dinheirinho extra no final do ano.
O trabalho não era fácil: atendíamos clientes, colocávamos preços em mercadorias, arrumávamos as vitrines. Aprendia-se por observação, porque na correria não dava tempo de ensinar nada a ninguém. A circulação era difícil, porque tínhamos que desviar de caixas, pacotes, sacolas, etiquetas, rolos de papel de presente. Só parávamos para almoçar e tomar lanche. Quando a correria acalmava um pouco, descansávamos lá dentro, cada um com uma tesoura, sentados nos degraus, enrolando fitinhas para colocar nos presentes. As horas passavam voando. No final do dia, a garotada mal se aguentava em pé, o cansaço estampado nas camisetas sujas e nos pés inchados.
Mas apesar da rotina puxada, eram 24 dias de muita diversão também. Passávamos horas testando brinquedos, experimentando perfumes, desvendando o funcionamento de relógios e jogos eletrônicos, dando risada de cada descoberta e cada erro. Todos os dias alguém aparecia com uma piada nova, com alguma história engraçada, com algum episódio inusitado com clientes. Meu pai, sempre bom anfitrião e adepto da filosofia de que "Saco vazio não para em pé", tratava a garotada a pão-de-ló. Até hoje ele é lembrado por isso. Quanto mais perto do Natal, melhores ficavam as refeições. Na véspera do Natal, a tradição do almoço era um pernil gigante, preparado pela dona Celme, que dava para alimentar uma tropa de 50 marmanjos.
Dona Alice tem ótimas lembranças desses 34 dezembros que passou atrás dos balcões. A loja sempre cheia e abafada, a energia da criançada que viu crescer e o clima de festa tornavam o cansaço de se administrar o bazar no Natal - trabalho que às vezes ia madrugada adentro - muito mais divertido. Na hora que os ajudantes iam embora, minha mãe sempre recomendava: "Descanse bastante, porque ainda temos xx dias até o Natal!"
Na tarde do dia 24, o bazar Liang parecia palco de uma batalha vencida. As vitrines vazias, todo mundo exausto. Era hora de trocar presentes do amigo secreto - sempre de chocolate - e dar a dona Alice as flores compradas às escondidas, com um cartãozinho assinado por todos os ajudantes daquele ano. Minha mãe tem todos os cartões guardados até hoje.
Passado tanto tempo desde os primeiros Natais, os ajudantes ainda fazem parte da vida do Bazar Liang. A maioria casou, alguns já tiveram filhos, outros mudaram de país, mas quando dá, passam pelo bazar para dar um beijo em dona Alice e relembrar histórias de dezembros passados: William, Ana Cristina e Verônica; Andrea e Margareth; Li Tumtum e Li Chuan; Cristiane e Daniela; Adriana e Marcelo; Aline; Tica; Karina; e, lógico, nossa querida e sempre presente Cema.
A todos vocês, nosso muito obrigada. Vocês ainda fazem os Natais no bazar Liang muito mais felizes.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

constante evolução

Na correria do mês de dezembro, dona Alice mal tem tempo para almoçar. O bazar vive lotado, clientes chegam com listas quilométricas e minha mãe, na adrenalina do balcão, esquece da fome. Quando dá uma brecha, ela corre para casa para comer alguma coisa. As refeições são sempre feitas às pressas, interrompidas por telefonemas, fornecedores e clientes que só aceitam ser atendidos por ela.
Eram quase duas da tarde quando ela conseguiu parar para almoçar hoje. Depois de devorar a comida em tempo recorde, o telefone começou a tocar insistentemente. Dona Alice estava escovando os dentes e não conseguiu atender. Começou a tocar de novo e enquanto descia as escadas correndo, minha mãe soltou, como se a pessoa da outro lado da linha pudesse ouvi-la: "Calma, cara (sic)! Não me faz pressão porque senão eu fico desequilibrada!"
É verdade o que dizem por aí: o português - pelo menos o de dona Alice - é uma língua em constante evolução.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

pequenas burocracias

Acho que a primeira vez que eu preenchi um formulário na minha vida eu tinha nove anos. Eram os cartões de matrícula da Escola União. Eu ia entrar na quarta-série, meu irmão na segunda e minha irmã no pré-primário. Meus pais, com pouco domínio do português e sem tempo para essas burocracias, deixaram a meu encargo o preenchimento das fichas verdes.
Com o tempo, o número de responsabilidades aumentou. Eu tinha que decifrar os comunicados da então Telesp, do Banco Bradesco, do Clube Banespa. Aos 14 anos, já era responsável por ler - e interpretar - resultados de exames e receitas médicas para a família. Fui eu quem confirmei para meu pai, depois de ler cuidadosamente o laudo, que meu avô tinha câncer de próstata.
Eu não me me questionava quanto a essas funções. Para mim, era o que todo adolescente fazia. Era parte do processo de virar gente grande.
Dona Alice nunca prestou muita atenção a essas coisas. Em sua rotina maluca de bazar e filhos, ela não ia a bancos, supermercados, não lia as correspondências oficiais que chegavam em casa. Suas consultas médicas eram marcadas, no início, por meu pai, depois por mim. E ela só ia se fosse acompanhada.
Hoje viúva e com filhos que quase não vê, dona Alice passa por um curso intensivo em vida burocrática. Sem ter quem faça para ela, ela assumiu as tarefas. Ontem, anunciou que havia renovado o seguro do carro. Anteontem, escutei uma conversa dela pelo telefone com a Cielo, negociando o valor da mensalidade. Na semana passada, ela marcou a consulta com o otorrino e foi sozinha até lá. Marcou os exames e foi sozinha até o Delboni fazê-los ("Mas Li, no jejum pode tomar água?"). Na semana retrasada, foi fazer um depósito no Banco Santander, onde nunca tinha posto os pés: "Cheguei lá e fiquei meio perdida. Mas aí perguntei e eles me ensinaram a tirar a senha!" Outro dia, caiu um temporal que acabou com a luz no bairro. A luz voltou logo depois, mas a TVA não. Dona Alice não teve dúvidas: ligou para o número que estava na TV para descobrir o que acontecia e fez a atendente dar uma previsão de quando o serviço ia estabilizar. Quando cheguei em casa, ela assistia a novela das 8, como se nada tivesse acontecido.
É quase um contrasenso: dona Alice cruzou o mundo para chegar no Brasil, fez a vida, criou três filhos, e ainda não conseguia se achar nas pequenas burocracias da vida. Mas está aprendendo. E eu assisto, orgulhosa, minha mãe virar gente grande.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

saci

Da série "Confusões de dona Alice"

Dona Alice mantém religiosamente uma lista de coisas a fazer. Todas as noites ela se senta no sofá, pega sua agenda e começa a enumerar todas as tarefas que precisa cumprir no dia seguinte, seja chamar o encanador para consertar a torneira da cozinha, seja marcar uma consulta com o otorrino, seja rearranjar a vitrine da loja.
Na lista de ontem constava: ligar para a Toyota para comprar novas calotas para a Hilux, que teve as suas roubadas. O ladrão, imagino que por falta de tempo, levara apenas as do lado direito.
À noite, dona Alice me passou o relatório: "Li, hoje liguei lá na Toyota para saber se eles têm as calotas da Hilux. O moço me disse que precisava do saci."
- "Ele precisa do quê, mãe?"
- "Do saci. O número do saci."
- "Mãe, é chassi, não saci. Repete: chassi."
- "Saci."
- "Chassi, mãe."
- "Chachi."
- "Não, mãe. Chassi."
- "Li, me fala logo onde está esse número que amanhã eu vou ligar lá de novo e ver se eles têm a calota."
E foi para a cozinha fazer o jantar.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

piquenique no cemitério

Um dos meus maiores suplícios quando eu era pequena era ir ao cemitério no dia de Finados.
Não que eu ficasse impressionada com a morte ou coisa do gênero. Longe disso. Minha maior preocupação era com o que as outras pessoas iam pensar do nosso piquenique sobre o túmulo da minha bisavó.
Explico: na cultura chinesa budista, depois que a pessoa morre, ergue-se um pequeno altar para ela dentro de casa. Lá você coloca uma foto do falecido e uma imagem do Buda (ou alguma variação do gordinho sorridente), que são reverenciados com a queima de incenso, no começo e ao final do dia. Duas vezes por mês são colocadas no altar frutas ou outras guloseimas - uma oferta singela para quem não está mais conosco. Depois que o incenso acaba de queimar, a comida pode ser consumida.
No dia de Finados fazíamos exatamente o mesmo ritual, só que a céu aberto e com uma pequena plateia. Chegávamos cedo, com todo o aparato no Cemitério Getsêmani, no Morumbi: flores, incenso, muita comida e um mundaréu de gente, porque famílias chinesas nunca são pequenas.
Enquanto os adultos ajeitavam as flores e a comida - ovos cozidos, frutas de todo tipo, nomi-fan (uma espécie de bolinho de arroz grudento, que pode ser doce ou salgado) - sobre o túmulo de minha bisavó, as crianças pequenas apostavam corrida pelo cemitério. As mais velhas, como eu, iam de lápide em lápide fazer as contas para saber com quantos anos a pessoa tinha morrido. Se fosse muito jovem, tentávamos adivinhar a causa da morte e criávamos histórias mirabolantes, no melhor estilo "Venha ver o pôr-do-sol", conto de Lígia Fagundes Telles.
Quando tudo estava pronto, nós éramos chamados para "bai-bai": cada um recebia o incenso aceso e, segurando-o na frente do corpo com as duas mãos, fazia a reverência à bisavó. Depois que todos houvessem passado diante do túmulo, a comida era distribuída, o bate-papo engatava e a ocasião se transformava num grande piquenique. Os visitantes e funcionários do cemitério observavam, sem disfarçar, aquela cena que parecia fora de lugar. E eu, no meu desconforto adolescente, nunca comia nada: achava tudo absolutamente constrangedor.
Ontem pela manhã cumprimos novamente nosso rito anual de dia de Finados. Mas passados tantos anos desde minhas primeiras visitas ao Getsêmani, não levamos flores apenas para minha bisavó. Esse ano levamos seis vasos de crisântemos brancos, inclusive para meu avô e meu pai, que nos deixaram cedo demais.
O resto da família foi chegando aos poucos: as matriarcas carregadas de flores, os anciãos cada vez mais curvados, primos da minha geração acompanhados da prole, que explorava feliz os gramados enormes e coloridos. As flores foram colocadas nos diferentes túmulos, enquanto as últimas notícias do ano eram trocadas com detalhes e risadas. Não havia um pingo de tristeza naquele encontro.
Foi aí que me dei conta: com o tempo, o dia de Finados se tornou para nós uma espécie de Thanksgiving. É a única data no ano em que encontramos todos da família, em que colocamos a vida em dia com pessoas queridas, mas que infelizmente encontramos pouco.
Esse ano houve piquenique no cemitério também. Menos organizado, porque as crianças não são mais tão obedientes, nem tão chinesas quanto minha geração. Mas como nos velhos tempos, os anciãos ajeitaram as flores e a comida sobre o túmulo da bisavó e um a um, os adultos pegaram o incenso e fizeram uma reverência a ela.
Depois que o último incenso acabou de queimar, a comida foi distribuída entre as quase 40 pessoas presentes. E eu, pela primeira vez, me arrisquei a pegar alguma coisa, enquanto tentava explicar a um tio-avô por que continuava solteira.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

happy hour

Chico Buarque devia ter acabado de conhecer a Aretha, nossa golden retriever, quando rabiscou os primeiros versos de "Cotidiano": "Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã".
Porque é exatamente isso que Aretha faz todos os dias: às seis em ponto ela sobe as escadas até os quartos, abre a porta do quarto de dona Alice e levanta o braço dela com o focinho até minha mãe acordar, dar um afago nela e voltar a dormir.
E com a mesma previsibilidade com que acorda dona Alice todos os dias, Aretha ronda a mesa do café da manhã. Ela nunca faz isso no almoço ou no jantar, porque sabe que comida ela não ganha, não importa quanto insista. Mas com pão e frutas a história é outra: Aretha come misto quente, pão com manteiga, pão com Amendocrem, pão-de-queijo, banana, mamão, melancia. Enquanto todos tomam o café da manhã, ela se reveza entre os membros da família, ganhando um pedacinho daqui, outro de lá. O último pedaço do meu sanduíche é sempre dela (e eu preciso mostrar o prato vazio para ela se convencer de que o sanduíche realmente acabou).
Outro dia, observando Aretha andando de um lado para outro, recebendo seus petisquinhos feliz da vida, dona Alice soltou, entre um gole e outro do café com leite:
"Nosso café da manhã é o happy hour da Aretha."
Era verdade. E ninguém nunca havia descrito isso tão bem.


quinta-feira, 14 de outubro de 2010

tiger woods chinesa

Dona Alice não é virginiana, mas é irritantemente perfeccionista. E competitiva. Não gosta de perder nem em corrida de saco em festa de junina.
Faz mais de dez anos que minha mãe joga golfe. Começou para acompanhar meu pai, com tacos emprestados. Logo pegou gosto pela coisa e viu que jogava bem. Participou de campeonatos, representou seu clube no exterior e ganhou inúmeros troféus, que exibe orgulhosa sobre o piano.
Depois que meu pai faleceu, dona Alice quis parar. Tinha medo de dirigir até o clube, em São Bernardo do Campo. Além disso, todos do seu círculo de amigos eram casais - quem seria seu parceiro nos jogos? Todo mês ensaiava cancelar seu título, mas a paixão pelo esporte falava mais alto. Resolveu mantê-lo e hoje cuida de seus tacos como se fossem de cristal.
Só que para dona Alice não vale apenas jogar. O ditado "O importante é competir" não diz absolutamente nada para ela. Importante mesmo é ganhar. Mas sem tempo para praticar, estava fazendo feio aos domingos, quando joga para valer com os amigos.
Foi na expansão do Campo Belo que dona Alice encontrou a solução para o problema.
O Campo Belo é hoje um bairro em crescimento. Grandes incorporadoras invadiram a região, compraram as casinhas que estavam aqui há décadas e todo fim de semana há um lançamento novo. E junto com os modelos decorados são também construídos gramados, mantidos até o início das obras. Gramados imensos, com alguns desníveis estratégicos, verdejantes, bem cuidados.
Dona Alice não teve dúvida: escolheu o empreendimento com gramado mais bonito e lá foi pelas ruas do bairro, com viseira e luva, carregando o case cheio de tacos e uma sacola cheia de bolinhas de papel, para treinar seu swing.
Os vigias dos terrenos no início achavam curioso - quem era aquela senhora de olhos puxados, que vinha cedinho, com uma infinidade de tacos, conseguia bater 200 bolinhas de papel em pouco mais de uma hora e depois saía pelo gramado recolhendo todas elas? Depois passaram a achar divertido. Alguns até começaram a deixar o lugar mais limpinho no dia anterior para que minha mãe pudesse praticar. Minha mãe, grata, dava gorjetas gordinhas.
Dona Alice já mudou algumas vezes de campo no bairro. As obras começam e ela é obrigada a encontrar outro gramado para treinar suas tacadas. Achou um que agora chama de "meu campo": uma área verde, de esquina, numa subida, cercada por um muro baixinho. O dono do terreno se recusou a vendê-lo à incorporadora, que levantou o prédio mesmo assim. Agora dificilmente conseguirá se desfazer dele.
Nesse campo, dona Alice pratica com bolinhas de verdade. Quando erra a tacada, a bolinha bate na árvore, perde velocidade, passa por cima do muro e sai pingando pela rua, para completa confusão dos passantes, que não entendem de onde elas vêm. Algumas pessoas, achando que as bolinhas não têm dono, guardam-nas no bolso, só para encontrar dona Alice lá na frente, toda equipada, a Tiger Woods chinesa. Todos se prontificam a devolver as bolinhas, mas minha mãe deixa que levem - uma pequena cortesia por usar o gramado alheio.
Os treinos têm dado resultado. Já faz algum tempo que dona Alice volta para casa feliz de seus jogos aos fins de semana. Entra em casa e vai direto para o tanque, limpar seus equipamentos. No dia seguinte, se estiver sol, pega tudo de novo e vai treinar algumas tacadas em seu campo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

o gordo

Dona Alice não entende de futebol. Se você perguntar a ela quantos cartões amarelos um jogador pode tomar por jogo ou qual a regra do impedimento, ela não vai saber te dizer. Mas ela adora assistir os jogos. Talvez seja o verde do gramado, talvez seja o vai e vém dos jogadores, talvez seja a vibração da torcida, ninguém sabe dizer. Mas de uns tempos para cá, ela deliberadamente procura jogos na TV - não sabe quem está jogando, nem qual campeonato - e assiste, xinga o juiz e torce sempre para quem está ganhando. Para dona Alice, a lealdade pelo time só vale em tempos de Copa.
Ontem a novela das oito acabou mais cedo para a transmissão de Corinthians e Atlético Mineiro pelo Campeonato Brasileiro. Enquanto os jogadores não entravam em campo, o narrador da Globo listava a escalação dos times. Minha mãe escutava, atenta, como se soubesse qual combinação faria um time vitorioso.
Quando ele terminou a escalação do Corinthians, eis que dona Alice solta a pergunta de um milhão de dólares: "Mas e o gordo?"
Quantos jogadores tem num time? Dona Alice não faz ideia. Mas o gordo? O gordo ela sabe quem é.



segunda-feira, 4 de outubro de 2010

celme

Antes de dona Alice havia a dona Celme.
Celme foi uma das pessoas de coração gigante que minha mãe encontrou na época em que vendia roupas de porta em porta. Bonita e dona de um irresistível sotaque mineiro, Celme morava numa casa de esquina no Campo Belo. Em seu quintal se erguia uma jabuticabeira imensa, que ainda hoje continua de pé. Seus dois filhos, Roberto e Silvana, tinham quase a idade de minha mãe. Ninico, seu marido, tinha uma linda cabeleira grisalha, dirigia uma perua escolar e era testemunha de Jeová. Na casa deles viviam três vira-latas simpáticos: Pelé, Pitu e Menina.
Celme era uma das melhores clientes de dona Alice: gentil, generosa e boa pagadora. Durante as compras, com frases curtas, gestos e risadas, foram se aproximando. Até que um dia, apontando para o barrigão que anunciava a chegada iminente do bebê, Celme brincou:
- Quando o bebê nascer você me dá?
Minha mãe riu, disse que sim e continuou tratando de negócios.
Quando eu tinha pouco mais de um mês, dona Alice apareceu na porta de Celme, bebê no colo. Celme tomou um susto. Explicou que estava brincando, que não podia ficar comigo, mas que poderia cuidar de mim se minha mãe quisesse.
E foi assim que ganhei minha primeira e única babá. No primeiro ano, minha mãe ia trabalhar e voltava a cada três horas para amamentar. Quando passei a tomar mamadeira, o já esporádico convívio com meus pais ficou ainda mais raro: eles me deixavam na casa de Celme ainda cedo, enquanto eu ainda estava dormindo; iam me buscar tarde da noite, quando eu já estava dormindo. Eu quase nunca os via.
Com Celme, tive uma educação completamente brasileira: falava só em português, aprendi a comer de garfo, adorava groselha e tinha medo da Cuca, do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Celme foi minha primeira referência materna e foi ela a quem eu, por anos, chamei de mãe. Dona Alice era "Mamãe Alice" (fato que ela mesma conta, não sem um quê de tristeza).
Quando completei quatro anos, minha mãe finalmente conseguiu comprar a casa que se tornaria o bazar. Agora ela poderia cuidar dos filhos como gostaria (a essa altura meu irmão já tinha dois anos) e passaria mais tempo com eles, sem a ajuda de uma babá.
A transição, no entanto, foi difícil. Eu estranhava a casa nova, não entendia chinês e sofria com a severidade de meu pai. Na volta da escola, seu Roberto fazia o caminho mais longo para que eu não visse a casa de Celme. Frustrados, meus pais se desesperavam por não conseguir explicar a situação à filha que parecia nunca parar de chorar.
Celme também sentia nossa falta. Telefonava sempre, queria saber como estavam as coisas. Ninico passava aos sábados, depois das reuniões no Salão do Reino, para matar as saudades. Quando ele ia embora, eu torcia para que me levasse junto.
Com o tempo, os adultos perceberam que a separação não era boa para ninguém. E, como num acordo que dispensava palavras, as duas famílias se uniram, as crianças (a essa altura, minha irmã já havia nascido) o elo entre pessoas tão diferentes. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, Celme adotou a família chinesa. Cozinheira de mão cheia, os almoços de domingo em sua casa foram por muito tempo uma tradição, com direito a corrida de F-1, macarronada e frango assado e soneca na rede após a comilança. É uma das minhas memórias mais vívidas de infância.
Não sei quando deixei de chamar Celme de mãe e Ninico de pai, mas a nomenclatura não mudou o sentimento. Com eles dividi grandes momentos: aniversários, Dias das Mães, Dias dos Pais, Natais, formaturas.
Mas o tempo passou e a vida foi acontecendo: eu e meus irmãos fomos explorar o mundo, meus pais fizeram outros amigos na comunidade chinesa que crescia em São Paulo e os encontros ficaram menos frequentes.
Ninico faleceu em 2003, um ano antes de meu pai. Celme hoje tem quase 80 anos, mora num prédio baixinho em Moema, mas não sai tanto quanto antigamente. Diz que não tem mais tanta energia. Seu coração, no entanto, continua grande. Mesmo com a saúde um pouco frágil, atravessava a cidade para visitar tia Delta, sua irmã mais nova, que faleceu há duas semanas de câncer. E ela nunca, nunca esquece de nossos aniversários.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

paleta de cores

Da série "Confusões de dona Alice":

Eliana é uma senhora ruiva e elegante que mora no prédio quase na frente do bazar da dona Alice. Ela e sua cadelinha Joy, uma pincher pretinha que desfila modelitos incríveis no inverno, passam todos os dias na loja entre 18h30 e 19h, depois da caminhada de final de tarde. Joy e Aretha dividem biscoitinhos, dona Alice e Eliana trocam as últimas do dia e é hora de ir para casa.
Outro dia, Eliana apareceu vestida com uma blusa verde-escuro, de tom parecido com as usadas no Exército brasileiro. Dona Alice, sempre gentil e dona de várias peças verdes no guarda-roupa, elogiou:
"Puxa, Eliana, você fica muito bem de verde-músculo!"
Verde-músculo. Acho que essa ainda não incluíram na paleta de cores.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

e-mails de dona alice

Dona Alice aprendeu a mexer no computador na época em que me mudei para a África do Sul, em 2007. Como boa aluna, ela anotava em chinês, num caderninho, todas as instruções: como ligar a máquina, como configurar para o software em chinês, como navegar na Internet, como escrever e acessar e-mails, como imprimir.
Depois da Internet, seu maior fascínio com o mundo tecnológico era o e-mail. Embora no começo fosse uma dificuldade catar milho num teclado em português, com as letras e pontuações dispostas sem lógica nenhuma, dona Alice aprendeu rápido. No começo, as mensagens eram curtas:

oi li,
como esta sua vida de jornalista do onu ? do com saudade do balulho de ha; ha.ha. sem voce a casa ficou muito sem graca as vezes meu coracao bem apertado ,mas
todo bem ,a gente vai levando, oba! quase esqeci de conta ,sabe meu malanciais do deserdo,ja esta en dia.desto viagen do natal ,corento para alcancar ,finalmente comsequer.do tao feliz sabia?
temque ir para cozina,porqer juli e luki ja chgou vou fazer jantar.

hu beijo bem grande
mamae de ama muito muito

devi ter bastante errado e sem acendo .mas juli ainta vai me ensinar. bay .


(Nota: "Mananciais no Deserto" é um livro devocional que minha mãe copiou todos os dias por anos, para praticar o português. Teve que parar esse ano por um problema no dedo que a impossibilita de escrever por períodos longos.)

Com o tempo, minha mãe pegou o jeito e passou a relatar dias inteiros em suas mensagens, que passava horas escrevendo. Contava sobre pessoas, lugares e episódios e seus relatos me traziam, pelo menos por alguns minutos, de volta para casa:

li ;
como estar ?receber minha imeil?
trabalhar muito ?mas tabem tem que quidar do saude .vai ua academia fazer ginastica ,tem que comer arroz tabem .as vezes pencei quer que voce come ?
tem um didado ;;quado jovem .usar saude para trogar o dinhiro ..quado velho .nem
dinheiro pode compra saude ,;;;poes em quanto jovem ,ja tem que quitar do propeia
saude .

se tiver yempo ,domigo vai para igreja da wu ma ma ,conhcer nova amiga ;;novo ambiende ,isso e muito bom

hoje e feriado de sao paulo .fui jogar golf ,,sair demanha 5 hora ,jogui 36 buraco ,antei
para calamba ,cancei muito ,mas ,e bom ,pratica um poco ,chegui agora poco ,comi
arroz com sopa de ontem ,estou satis feido ,,ha ha ..

em casa tudo bem ,fu trabalha bastante ,eu ,cuitar da aretha ,loja banco ,e faxina de casa ,poquer ,a maria nao vem mais ,entao ... que vai fazer ,,mas tudo bem ,isso e menos ,gracas da deus ..tenho saude para trabalhar ,nao e ?

amo muito muito voce
um beijo

mamae


Os e-mails de minha mãe ajudavam a matar a saudade, do Brasil e, principalmente, dela. Um pouco como quando éramos pequenos e dona Alice viajava a Taiwan de férias. Esperávamos ansiosamente pelas cartas que ela nos mandava, em papel de seda e com letra caprichada. Aquelas finas folhas de papel faziam a saudade diminuir um pouco.
E como fiz com as cartas, fiz também com as mensagens: guardei, com carinho e cuidado. De todas (e são muitas!), minha preferida é essa, que recebi quando completei 34 anos.

filha,

parabes para voce ,gente que tempo passar ,paracer outro dia voce nasceu,gortinha fofinha ,bonidinha e ch/orona ,cada 3 hora tem que dar leite ,aquera epoca ,eu nao precisava relogio ,pelo choro da nene ja sei qual hora ja,e papai dava banho de voce ,ele premeiro lava pe dele bem limpinho ,depois corocou na banhoro para apoia sua cabecinha ,e grante mao dele segura a bumbum ,assim eu e papai brincava com nossa boneca ,ate fu nasceu ,e muito saudade no tempo boms ,ja um piscadinha passou 34 anos ,filha ,mamae de amo e muito muito .....
ja na hora de ir para loja ,depois eu escrever mais ,bom dia do aniverssario ,muito beijo ,muito feliscidade

mamae amo muito muito voce


Estar de volta é bom, muito bom. Mas sinto falta de receber mensagens da dona Alice.


segunda-feira, 13 de setembro de 2010

bazar do seu roberto

O nome que meu pai adotou quando chegou ao Brasil, em 1968, foi Roberto. Como Alice, ninguém sabe exatamente de onde surgiu Roberto, mas fato é que o nome pegou.
Seu Roberto era um homem bonachão, de riso aberto e que tinha uma extrema facilidade de fazer amigos. Conhecia todo mundo no Campo Belo e podia ser visto nas padarias e botecos do bairro, pagando cafés, cervejas e petiscos para conhecidos que encontrava na rua, fossem eles frentistas, taxistas, empresários ou advogados. Usava calça social com tênis (em dias de muita inspiração, usava meias verdes), carregava para onde fosse uma sacola da marca Tiger e quando chovia, colocava um boné.
Meu pai nunca teve muito tino para negócios. Quando trouxe minha mãe para o Brasil, em 1973, estava atolado em dívidas, contraídas num período de cinco anos. Não era bom com dinheiro. Foi dona Alice quem colocou ordem nas finanças do casal e seria ela quem depois sustentaria a família de cinco com o bazar Liang.
Embora dentro de casa seu Roberto fosse um homem severo, autoritário e de poucas palavras, fora de casa sua persona social o transformava num sujeito afável, ótimo contador de histórias e piadas. Vivia cercado de amigos, era sempre ao redor dele que a roda se formava nos jantares e festas. Era generoso também. Emprestou dinheiro a um sem-número de pessoas. Deu dinheiro a várias outras, que ainda hoje, seis anos depois de sua morte, lembram dele com carinho e gratidão.
No bazar, seu Roberto ajudava mais com entretenimento do que com vendas propriamente. Para ele, a loja era uma grande sala de estar. Agradava os clientes, batia papo em português carregado. Era mestre em elogiar as senhoras, que caíam de amores por ele. Gostava de gente. Atrás do balcão, era uma negação. Não sabia o que havia nas vitrines, seu vocabulário limitado impedia que ele explicasse como funcionavam os produtos. Seus descontos eram generosos, para alegria de clientes e desespero absoluto de minha mãe.
Com o tempo, meu pai assumiu outras funções na dinâmica familiar. E nesse sentido, ele foi um pioneiro: enquanto minha mãe tocava a loja, ele cumpria funções administrativas e domésticas. Era ele quem fazia compras para o bazar e ia ao banco para depositar o faturamento do dia. Era ele quem nos buscava na escola e nos choferava para atividades extra-curriculares. Era ele quem fazia feira e supermercado, quem sabia as marcas de Danone que gostávamos, a quantidade de óleo necessária para passarmos o mês, qual era a época de jabuticabas e mixiricas. Meu pai era o que hoje se chama de "pai moderno", com o detalhe de que na época o conceito de "pai moderno" não existia.
O dia estava lindo, de céu azul sem nuvens, quando seu Roberto faleceu em 2004. Ele escolheu o dia de Finados para ir embora. Partiu em grande estilo, do jeito que teria escolhido se soubesse que iria tão cedo, se tivesse tido tempo para preparar: funeral lotado, cemitério movimentado e cheio de flores, clima de festa. Meu pai era esperto mesmo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

"meu, tá bombando!"

Dona Alice aprendeu a falar português no dia-a-dia. Teve pouca educação formal na língua, com aulas em escolas públicas e igrejas quando sobrava um tempo na rotina corrida de loja, casa, marido e filhos.
Por isso, seu português é uma mistura do português culto, que aprendeu nos livros, e do coloquial, que pratica no balcão. Dona Alice entende e se faz entender muito bem, com um sotaque que eu considero imperceptível, mas que meus amigos insistem em dizer ser carregado.
Mas o mais divertido de se conversar com ela é observar o seu uso de gírias. Como estrangeira, minha mãe não sabe diferenciá-las da norma culta e nem tem conhecimento de que gírias caem em desuso. Para ela, todas as palavras estão numa mesma categoria e cabe a ela aprendê-las.
E ela aprende rápido. Dona Alice repetia todas as nossas gírias adolescentes quando estávamos na escola e, incrivelmente, usava sempre nas situações certas. Algumas passaram; outras, como "maior legal", ela incorporou ao vocabulário e não abandona por nada no mundo.
Nós crescemos, viramos adultos e as gírias de minha mãe evoluíram junto com as nossas. Hoje é comum flagrá-la ralhando com a Aretha, nossa golden retriever, porque ela "só causa". Ou comemorando o fato de o Benjamim Botequim, o bar vizinho da loja, estar "bombando". Ou reclamando de prazos não cumpridos e de fornecedores "sem noção".
E quando eu achava que ela já tinha dominado todas as gírias mais recentes e que, portanto, seu português beirava a perfeição, dona Alice solta, diante de algum comentário implicante de minha parte: "Meu, Li, você é muito mala!"
Aí eu percebo que sempre há espaço para melhora.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

parque de diversões

O bazar da dona Alice foi um lugar ótimo para se passar a infância. Foi detrás dos balcões que eu e meus irmãos entendemos, ainda muito cedo, a importância do trabalho, o conceito de responsabilidade e o valor do dinheiro.
Ainda pequenos, aprendemos a atender clientes, fazer pacotes e dar o troco (fazíamos as contas de cabeça. A calculadora só era permitida para conferência). Sabíamos a diferença entre as cargas para caneta esferográfica e rollerball, entre os joguinhos Donkey Kong 1 e 2 e entre os perfumes Azzaro e Paco Rabanne. Sabíamos fazer a conversão de valores de dólar para cruzeiro, cruzado e outras inúmeras moedas que vieram depois. Sabíamos que era importantíssimo pedir o RG quando recebíamos cheques de desconhecidos e dávamos bronca nas crianças que bagunçavam as vitrines.
Mas tudo isso acontecia quando a loja estava aberta.
Com as portas de ferro abaixadas, o bazar da dona Alice se transformava em nosso parque de diversões particular. Ficávamos encantados com os brinquedos à venda: Falcon, Suzy, Aquaplay, Playmobil, Pula Pirata, pião luminoso, cubo mágico, geleca, Comandos em Ação... eram tantos!
Mas o mais divertido eram as brincadeiras que aconteciam dentro do bazar. "Gato Mia" - uma espécie de esconde-esconde no escuro - dentro das vitrines era um hit entre as crianças que iam nos visitar. Perdi a conta de quantas vezes passamos da hora de dormir jogando "Stop" até tarde da noite, apoiados nos balcões, escrevendo no verso de folhas de papel de presente. Na loja pulávamos corda, jogávamos cartas (pif-paf e batata-maçã eram os preferidos), desenhávamos, jogávamos bola, fazíamos grandes competições. Estávamos sempre cercados de crianças, a casa cheia de risadas. Com o bazar, quem precisava de um playground?






Quando tinha 10 anos, fui matriculada no colégio Porto Seguro, conhecido por sua rigidez alemã e pelos alunos abastados. Um dia, fui convidada para uma festa de aniversário em Alphaville, na época em que Alphaville só tinha mansões enormes e gente muito rica. Para minha surpresa, a casa da minha coleguinha tinha piscina com cachoeira e elevador. Eu olhava para tudo como se tivesse chegado em outro país. Não entendia como aquilo podia existir na vida real.
Quando cheguei em casa à noite, lembro-me claramente, achei tudo sem graça, sem brilho, sem valor. Minha mãe já estava de pijama, a luz branca iluminando a cozinha diminuta. Perguntei a minha mãe por que nós não vivíamos como eles. Por que eles tinham uma casa tão grande com piscina e nós brincávamos dentro da loja?
Minha mãe suspirou e me explicou, com uma paciência que hoje eu sei apreciar, que nós tínhamos o que podíamos ter. "Papai e mamãe trabalham bastante, Li, para poder pagar uma boa escola para vocês. Talvez um dia a gente tenha uma casa com piscina. Talvez não. Mas agora é o que conseguimos ter."
A explicação me bastou. Entendi que, com o bazar, minha mãe nos dava mais que um playground: nos dava uma infância de aprendizado. Nunca mais toquei no assunto e, junto com meus irmãos, ainda passei muitos anos brincando no bazar da dona Alice.

numerologia

Da série "Confusões de Dona Alice":

Dona Alice e eu discutindo o melhor andar para se comprar um apartamento.
Dona Alice: "Acho que os melhores andares são o 5, 6, 7 e 8. (chineses procuram evitar o número 4 porque o fonema tem o mesmo som da palavra "morte"). Desses, o 6 e o 8 são os melhores, porque são números pares."
Eu: "Mas mãe, o 7 também é bom. 7 é o número perfeito. Deus criou o mundo em 7 dias, existem 7 notas musicais, 7 cores no arco-íris..."
Dona Alice, com cara de que tudo se encaixava: "É mesmo! E tem os 7 anões também!"

terça-feira, 24 de agosto de 2010

promessa de criança

Ele devia ter três ou quatro anos na época. Um menino branquinho, de olhos claros e muito falante, era uma daquelas crianças habitués no bazar da dona Alice. Quem o trazia era a avó, vigorosa, simpática e igualmente falante, que sempre que podia, dava uma passada na loja que ficava bem na frente de seu prédio.
Um dia, o netinho se apaixonou por um carrinho. Não daqueles bobinhos, pequenos e que só andam a fricção. Nada disso. Era um carrinho de controle remoto, movido a pilhas, com antenas, que ele poderia pilotar. Um carrinho de menino grande.
"Vó, a gente pode levar esse carrinho?"
"Não, a vovó está sem dinheiro."
"Mas eu queria..."
"Mas a vovó está sem dinheiro..."
Ele parou, pensou e não demorou para achar uma solução, que propôs sem hesitar a quem poderia de fato resolver a questão.
"Tia Alice, eu posso levar esse carrinho e eu te trago um bolo?"
Minha mãe deu risada e logo lhe deu o carrinho. A avó pediu desculpas, insistiu que voltaria para pagar. Dona Alice repetiu que não era necessário: com um pedido original e irresistível assim, quem precisava de pagamento?
Alguns dias depois, o pequeno veio novamente visitar o bazar com sua avó - dessa vez carregando um bolo quase maior que ele.
"Tia Alice, eu trouxe esse bolo pra você! Eu que fiz!", anunciou ele, felicíssimo com sua façanha.
A avó depois contou, orgulhosa: seu netinho não havia se esquecido da promessa. Com sua ajuda, ele havia quebrado os ovos, colocado os ingredientes, batido a massa, levado ao forno. E tinha feito questão de ir carregando o bolo até a loja.
Hoje passados alguns anos, dona Alice nem se lembra de que sabor era o bolo. Mas garante que foi um dos melhores que já provou.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

pois não?

Dona Alice desembarcou no Brasil sem saber uma palavra em português. Já tinha em seu repertório o mandarim, língua oficial de Taiwan; o taiwanês, que falava em casa; e o hakkanês, que teve que aprender para se comunicar com os sogros. Nunca, nem nos seus sonhos mais absurdos, achou que um dia fosse aprender português. Cantonês, talvez. Inglês, quem sabe? Mas português?
As primeiras palavras que meu pai, que já havia passado uma temporada de cinco anos no Brasil antes do casamento, lhe ensinou foram "sim", "não" e "obrigada". Com esse kit de sobrevivência de exatos três vocábulos, dona Alice começou a se aventurar pelas ruas da cidade, primeiro tímida, depois intrépida, vendendo roupas de porta em porta.
A estratégia era simples: tocar a campainha e esperar alguém atender. Se a pessoa dissesse "não", meu pai havia ensinado, minha mãe teria que dizer "obrigada" e seguir para a próxima casa, porque a pessoa não estava interessada em comprar.
Ele só não contava com o "Pois não?" com que algumas senhoras atendiam a porta. Dona Alice só entendia o "não" e, diante da negativa, dizia "obrigada" e continuava em frente. Algumas senhoras corriam atrás dela, para completa confusão de minha mãe, que não entendia como elas mudavam de ideia tão rápido. Mas nada disso importava: ela entrava de bom grado nas casas, mostrava as roupas que carregava nas sacolas e se comunicava através de uma folha de papel com duas frases: "Quer comprar roupa?" e "Quanto?". As clientes achavam graça e sempre ofereciam bolo e chá para aquela chinesa de barrigão e maria-chiquinhas. Muitas são amigas até hoje.
Hoje dona Alice domina o português sem problemas e o "Pois não" faz parte de seu repertório de vendas. Assim como o "Posso ajudar? Se precisar de alguma coisa, é só chamar" - só para garantir.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

portas abertas

Em 34 anos, as únicas vezes em que minha mãe deixou de abrir o bazar foram em circunstâncias de luto: em 01 de abril de 1992, quando meu avô faleceu; e em 02 de novembro de 2004, quando meu pai faleceu. As portas de ferro abaixadas num dia de trabalho eram tão desconcertantes que quase dispensavam a plaquinha "Fechado por motivo de luto".
Abrir a loja sempre foi um ritual para dona Alice. Era o que marcava o início do dia, depois de despachar as crianças para a escola: levantar as portas de ferro, estender o toldo para proteger a vitrine do sol, limpar os vidros, varrer o chão. Quando morávamos nos fundos da loja, abrir o bazar era como abrir a sala para receber visitas. Hoje, 34 anos depois, ela ainda sai animada de casa, sempre comemorando: "Que bom que eu tenho uma loja para abrir!"
Depois da morte do meu pai, eu defendi a ideia de que o melhor seria fechar a loja. Vender, passar para frente, transformar em outro negócio. Achava que minha mãe nunca superaria a perda do meu pai se ela continuasse atrás dos balcões do bazar Liang. Meus irmãos, mais novos mas infinitamente mais sensatos, vetaram minha proposta. "A loja fica aberta", decidiram. "Depois a gente pensa no que vai fazer."
Nos dias que seguiram aquele triste dia de Finados em 2004, minha mãe não se permitiu ficar em casa. Abatida, ela havia perdido peso, cor e vida. A tristeza era infinita, as lágrimas teimavam em brotar, o vazio parecia crescer, mas dona Alice acordava cedinho, vestia cores sóbrias (por muito tempo após a morte do meu pai ela se recusou a usar vermelho, sua cor preferida) e ia abrir sua loja.
E foi através das portas abertas do bazar que vieram solidariedade e alento. Vizinhos, amigos e clientes, gente do bairro e gente de longe, todos vinham dar colo, trazer um bolo, oferecer um abraço, dizer quanto gostavam do meu pai e quanto torciam para que ela se recuperasse logo. Era uma força-tarefa para trazer a dona Alice de volta.
Dona Alice voltou. E abrir a loja continuou sendo o ritual que dava início ao dia. O que ela não sabia é que as portas abertas eram vias de mão dupla.
Outro dia, uma cliente de longa data, sempre bonita e cheia de vida, passou na frente da loja. Não cumprimentou, como costumava fazer. Continuou andando, cabisbaixa. Quase bateu a cabeça no suporte do toldo, mas nem percebeu. Minha mãe achou estranho. Soube depois que ela tinha perdido a irmã mais nova, de quem era muito próxima, para uma doença fulminante.
Hoje a cliente passou de novo na frente da loja. O dia estava ensolarado, mas ela vinha abatida, vestida de preto, o rosto sem expressão. Minha mãe largou tudo e chamou o nome dela. Ela parou, como se tivesse sido interrompida em seus pensamentos, e dona Alice simplesmente lhe deu um abraço. Ela chorou, chorou, chorou e disse que hoje fazia dois meses que a irmã dela havia falecido. Estava andando pelo bairro para ver se a tristeza passava um pouco.
Minha mãe lhe deu apenas dois conselhos práticos: "Não use mais preto. Preto não é bom. E venha mais aqui no bazar. Aqui você vai se distrair."
Ela limpou as lágrimas, deu outro abraço em dona Alice, e foi embora.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

tudo igual

Da série "Confusões de dona Alice":
Domingo à noite, família reunida assistindo "Em busca da felicidade", com Will Smith. O drama se passa em San Francisco, na Califórnia, onde eu morei dois anos da minha vida (na verdade era Berkeley, mas é tão pertinho...). Os olhos de dona Alice se iluminaram ao ver a Golden Gate Bridge na telinha.
"Adoro ver os lugares que eu já visitei na televisão!"
Logo engatamos um papo sobre lugares que ainda queremos conhecer nos EUA. Meu irmão elegeu Chicago. Eu escolhi Seattle (muitos episódios de Grey's Anatomy, imagino).




E minha mãe: "Seattle? Mas Seattle não é a máquina de cartão de crédito?"
Seattle, Cielo... qual a diferença mesmo?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

gente da família

Com o passar dos anos, o Campo Belo transformou clientes do bazar da dona Alice em pessoas da família. São relacionamentos que ultrapassaram os limites do balcão e viraram amizades, daquelas de dividir alegrias, tristezas e as coisas corriqueiras da vida. Teresa Barreto é uma delas. Desde que me conheço por gente, essa professora de literatura da USP já era cliente do bazar. Com o tempo, virou amiga e fonte inesgotável de dicas ótimas, desde pedreiros confiáveis a aulas de circo no bairro. Suas dicas são tão boas que minha mãe deu a ela o apelido de Disk-Barreto (ou Disco-Barreto, como diz dona Alice).
Esse ano percebemos como Teresa é parte de nossas vidas. Num sábado de manhã minha mãe acordou muito mal, sem conseguir sair da cama. Suspeitamos se tratar de uma crise de labirintite. Meu irmão colocou minha mãe no carro, tonta e delirante, sem falar coisa com coisa. Lá pelas tantas, já perto do pronto-socorro do hospital São Luiz, dona Alice diz: "Liga pra Barreto. A Barreto vai ajudar a gente".
Querida como só ela, assim que soube do blog, Teresa quis colaborar. Ela foi uma das primeiras a perceber que o bazar da dona Alice era recheado de histórias.

"Freqüento o Bazar Liang desde que me mudei para o Campo Belo, há quase trinta anos. Acompanhei as crianças em cada fase, música, karatê, vestibular. Diz Alice que eu cantei a bola sobre a aprovação de Lilian na USP. Devo ter sabido lá dentro, nem me lembro como. Mas na manhã seguinte, e para minha sorte, lá estava o nome dela nos jornais, aprovadíssima na ECA.
Comecei fazendo uma que outra comprinha, perguntando das crianças, cujos nomes me escapoliam. Usava cabelo liso, reto, com franja. Um dia, Alice perguntou-me se aquilo era peruca. A menininha que mal aparecia detrás do balcão riu amarelo, com vergonha. Respondi que não. A chinesinha não acreditou, queria uma prova. Ofereci-lhe as pontas do cabelo, que ela puxou. Com vontade. Desapareceu com meu ai, e a partir daí ganhei a confiança da família: eu dizia a verdade!
Belo dia, duas senhoras não se decidiam pela compra de um relógio. Será que levo? Ah, você é quem sabe... Mas é tão lindo... É, mas pense bem... E a compra que não atava nem desatava. Eu, ali, só observando. Até que tasquei: Alice, você tem outro relógio igual a esse? É para mamãe. A senhora irresoluta tirou-o do pulso, e passou-o para mim. De pronto, encarnei a justiceira: AB-SO-LU-TA-MEN-TE! As senhoras chegaram antes, e o que é certo, é certo! Preciso do presente só no final do mês, e tenho certeza de que Alice consegue outro, não é? Ela anotou o pedido num caderno universitário. A senhora mandou embrulhar seu novo reloginho. E eu, assim que ambas saíram, fui convidada a fazer algumas participações especiais em dias de muito movimento e excesso de indefinição.
As prosas, a amizade e a camaradagem foram sempre crescendo, mas devagarinho, no ritmo certo. Convites recíprocos sempre foram aceitos, o que sempre me honrou. Ter Alice, Ju e Lili numa homenagem a papai foi uma surpresa e a certeza de uma amizade bonita e sincera. Até porque as meninas me surrupiaram o convite e o aceitaram, na hora.
Já compartilhávamos lágrimas e gargalhadas.
No dia seguinte à morte de papai, fui com mamãe ver os amigos no bazar. Contei o ocorrido. Quando Juliana veio nos cumprimentar, Eugene lhe deu a notícia, em chinês. Entendi cada palavra. Diante da estupefação de Ju, confirmei-lhe o que Fu lhe havia dito. Alice, cheia de sabedoria e delicadeza, ofereceu o emprego de empacotadora a mamãe.
Amo a família Liang!"

A gente te ama também, Teresa!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

coisas que as crianças dizem

Menino de cinco anos, no bazar da dona Alice. Curte os carrinhos, namora os bonequinhos dos super-heróis e pára na vitrine de relógios, repleta de modelos infantis que mais servem para enfeitar o pulso do que para ver as horas. Como gente grande, repetindo o que já tinha ouvido sua mãe dizer em outras lojas, pediu para ver:
- Tia, posso dar uma "molhadinha"?
Só não entendeu nada quando a loja toda caiu na gargalhada.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

aretha

Depois que meu pai faleceu, em 2004, resolvi comprar uma golden retriever para minha mãe. Já fazia tempo que eu queria um cachorro (uns bons 20 anos) e aquela me parecia a ocasião perfeita. Cães eram terapêuticos, era o que eu tinha lido. Um cãozinho em casa ajudaria nessa nova fase, diziam meus amigos. Era o plano perfeito.
Só não contava com a relutância de dona Alice. Quando anunciei a decisão e comecei a listar todas as razões por que eu era uma gênia, ela me interrompeu: "Não quero saber. Se você aparecer com um cachorro aqui, eu mando você e ele de volta para o canil".
Um pouco intimidada mas não completamente convencida, levei o plano adiante. Junto com Chandra, amiga de infância, fui buscar Aretha em Cotia no aniversário de um mês da morte do meu pai. Ela chegou em casa filhotinha e foi recepcionada por uma família que não sabia nem como catar o cocô da pobrezinha. Sem esforço e antes que qualquer um percebesse, ela já tinha conquistado minha mãe. Eu realmente era uma gênia.
Passado o período de adaptação, dona Alice começou a levar Aretha para a loja, com dó de deixá-la sozinha em casa o dia todo. Obediente, Aretha logo aprendeu que não podia sair na rua. Fica na entrada da loja, recepcionando quem entra. Algumas pessoas têm um pouco de medo porque ela não é exatamente um cachorro pequeno, mas a maioria adora. Muita gente virou cliente porque parou para brincar com ela.
E os visitantes passam o dia todo. Tem o velhinho que mal saía de casa, mas desde que conheceu a Aretha, desce duas vezes por dia do prédio para vê-la. Tem o porteiro que todo dia se despede da Aretha no caminho para casa. Tem a moça bonita que passa dizendo "Gente, que linda!". Tem o seu Luís, vizinho e amigo querido, que passa duas vezes por dia na loja para dar docinhos para ela. Tem a madame que pára no farol com o carro, abre a janela e grita "Aretha!". E, lógico, tem as crianças - as pequenas Luísa e Marina são regulares - que aparecem para deitar e rolar com ela.












Mas mais do que ser um adorável cão numa loja, Aretha cumpre uma insuspeita função: lá no bazar da dona Alice, ela mantém uma atmosfera de cidade de interior.
O Campo Belo, antes um bairro tranquilo e repleto de casas de vovó, passa hoje por um processo de verticalização, com prédios de altíssimo padrão levantados da noite para o dia e gente que não anda mais na rua. Mas naquele pedacinho da Vieira de Morais, em volta da Aretha, as pessoas páram, se cumprimentam, sentam no degrau para afagar o cachorrão e jogar conversa fora. Um bem-vindo descanso para a correria do dia-a-dia.
Essas coisas nunca tinham me passado pela cabeça até outro dia. Era final de tarde, o tempo quente, as pessoas na rua. Quando me dei conta, vi que participava de um encontro inusitado. Enquanto os donos trocavam animadamente as últimas peripécias de seus cães, Aretha, Joy, Nina e Fred dividiam biscoitos coloridos - um delicioso chá da tarde canino.
Um dia como outro qualquer no bazar da dona Alice.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

cema conserta tudo

Iracema veio trabalhar como balconista no bazar da dona Alice com 15 anos. Magrinha, mirrada de tudo, mal pesava 45 quilos. Natural de Alagoas, morava na mesma rua que a gente, tinha um namorado chamado Cristóvão e uma cadelinha vira-lata chamada Samantha.
Não demorou para Iracema virar Cema. E Cema conquistou todo mundo da família com seu jeito bem-humorado e prestativo. Nunca teve medo de trabalho e adorava uma limpeza, seguida de arrumação. Atender clientes nunca foi seu forte. Para deixá-la feliz, bastava pedir para arrumar vitrines, estoques, gavetas. Lá ia ela, balde na mão, paninho para esfregar, mil produtos de limpeza. A loja pós-arrumação da Cema estava sempre tinindo.
Cema basicamente cresceu com a gente. Era quase uma irmã mais velha: ela tinha 15 anos, eu 10, meu irmão 8 e minha irmã 5.
Cema terminou os estudos e continuou no bazar da dona Alice. Quando achou que era hora, juntou os trapinhos com Cristóvão, seu primeiro namorado. Com ele teve uma filha, Gabriela, bebê de olhos grandes e riso fácil, hoje com 17 anos. O casamento não durou. Quando Gabi tinha pouco mais de dois anos, Cema conheceu um outro rapaz, seis anos mais novo que ela. Com Nilton, um baiano de poucas palavras e fã de Bob Marley, reconstruiu sua vida e teve outra filha, Isabela, que faz oito anos em setembro e é a miniatura do pai.
Como se não bastasse a mania de arrumação, Cema sabe um milhão de outras coisas: como pregar botões, costurar, tirar manchas de roupa, desatar nós, trocar bateria de relógio, colar vasos quebrados, tirar Super-Bonder dos dedos, aplicar tintura nos cabelos. Cema conserta tudo.
Com o passar dos anos, Cema virou membro da nossa família. Escuta os segredos de todo mundo, sem dar opinião, sem julgar. Só escuta. Virou confidente da dona Alice e sabe mais de minha mãe do que eu e meus irmãos juntos. Quando meu pai era vivo, era para Cema que minha mãe contava as brigas, as coisas boas, as conquistas. Depois que meu pai faleceu, é com Cema que minha mãe divide os sonhos premonitórios, os medos, as preocupações, as vontades - coisas que ela acha que os filhos não vão entender. Cema não fala nada, não dá bronca, não julga. Só escuta.
Outro dia, Cema ligou no celular da minha irmã. Já passava das nove da noite, horário inusitado para ela ligar.
"Juli, não fala pra sua mãe que sou eu, mas só estou ligando para avisar que ela está com uma dor no ombro que está me deixando preocupada. Falei para ela ir ao médico, mas ela não quer. Veja se vocês conseguem convencê-la."
Depois de tantos anos arrumando as gavetas do bazar, Cema aprendeu também a arrumar as gavetas emocionais da família. Tornou-se uma espécie de tradutora, ao me explicar, com pleno entendimento, coisas que eu acho maluquices da minha mãe; ou ao pedir mais paciência de meu irmão com atitudes aparentemente ilógicas da dona Alice. Com um vocabulário de cinco palavras em chinês, ela entende minha mãe e traduz para o nosso idioma. Tudo faz sentido quando ela explica.
Ano passado, Cema completou 40 anos e 25 anos no bazar da dona Alice, com um breve intervalo de dois anos. Continua com a mesma disposição de quando começou, só um pouco mais gordinha. E mais bonita, muito mais bonita. É o que todos dizem.

sábado, 31 de julho de 2010

palavras difíceis

Hoje minha mãe fala português perfeitamente, mas quando éramos pequenos, ela não dominava muito a língua. Foi aprendendo na rua, no contato com clientes, no acerto-e-erro. Era o português do dia-a-dia: básico, suficiente, sem grandes sofisticações, e que lhe rendeu episódios engraçados, como o do ladrão que entrou na loja anunciando um "assalto" e ao invés de dinheiro, quase saiu levando um extrato bancário, porque minha mãe entendeu que ele queria ver o "saldo".
Mas dona Alice estava convencida de que, se ia fazer a vida no Brasil, tinha que aprender a ler português. Aprendeu na marra, com o auxílio de livros bilíngues, um dicionário usado e com páginas faltando, amigos pacientes que se dispunham a ensiná-la, aulas noturnas em escolas públicas e igrejas depois de um dia inteiro fazendo malabarismo com casa, família e trabalho. Anos de esforço compensaram: O Velho e o Mar, de Hemingway, e Éramos Seis, de Maria José Dupré, lidos em português, estão na lista de seus livros preferidos.
Para mim, a língua vinha sem esforço. Embora com pais chineses, minha vida acontecia em português: escola, babá, Sítio do Pica-Pau Amarelo. Ainda no primário, meu domínio do idioma já era melhor que de meus pais. A partir da terceira série, quem preenchia os formulários escolares - meus e dos meus irmãos - era eu. Comunicados do banco e da Telesp que meus pais não entendiam eram invariavelmente passados para mim, que tentava, sem sucesso, entender aquela linguagem que nem parecia português.
Minha mãe me perguntava as palavras que não conhecia. E eu, com meu vocabulário de oito anos, tentava explicar da melhor forma possível. Algumas vezes eu também não conhecia a palavra. E quando conhecia, nem sempre conseguia explicar, para frustração das duas. O jeito era apelar para o dicionário e torcer para que a palavra não estivesse numas das páginas que estavam faltando.
Um dia, num domingo à noite, o telefone tocou. Minha mãe atendeu e logo ficou claro que ela não estava entendendo o que a pessoa do outro lado estava dizendo. "O quê? Se eu quero o quê?" Sem entender a resposta, ela acabou desligando.
Eu tinha oito ou nove anos e já estava pronta para dormir.
"Filha, o que é 'transar'?"
"Não sei, mãe. A gente ainda não aprendeu esse verbo na escola. Mas eu acho que quer dizer sair, passear. Por quê?" (De onde eu tirei essa resposta, só Deus sabe.)
"Porque esse cara no telefone perguntou se 'eu queria transar'."
"Ih, mãe, acho que ele estava te convidando pra sair!", eu disse, dando risada.
"Que gente louca. O que é isso, liga para a casa de qualquer um para convidar para sair? Cada coisa...", disse ela, enquanto apagava a luz do meu quarto.
Eu só fui descobrir o real significado da palavra anos depois, já adolescente, mas nunca me dei ao trabalho de explicar para dona Alice. Mas acho que nem preciso: hoje com um português bem mais fluente, ela já deve saber o que é.

dona alice no volante

Minha mãe nunca dirigiu muito quando nós éramos pequenos. O máximo que fazia era levar a gente para a escola, a velocidade de tartaruga, e quando necessário. Meu pai sempre foi o dono do carro: supermercado, feira, compras para a loja, leva-e-traz de crianças. E quando ela precisava ir a algum lugar, pedia que meu pai a levasse. Quando ele não podia, ia de táxi. Simples assim.
Meu pai sempre foi fã de carros e o tamanho deles foi aumentando a cada troca. O primeiro carro, logo que chegaram no Brasil, foi um Fusquinha branco (vendido). Depois o Opala bege (vendido), o Comodoro prata (roubado), o Diplomata azul-marinho (destruído por mim), o Ômega verde (vendido), a Hilux verde (roubada), até a atual Hilux pérola, que continua firme e forte.
Depois que meu pai faleceu, minha mãe teve que aprender a desbravar as ruas de São Paulo ao volante. Apesar de conhecer os bairros, ela tinha medo de dirigir até eles. Tem muitos carros na rua, dizia ela, e ela tem pouca agilidade. Os motoristas hoje em dia são imprevisíveis. Aos poucos, ela passou a depender da minha irmã, que, geralmente de boa vontade, levava dona Alice aonde ela quisesse.
Eu, desse lado, desaprovava a mordomia. Dizia, em alto e bom som (e não sem uma pitada de culpa), que quanto mais minha irmã fizesse isso, mais minha mãe ficaria dependente dela. Mas não adiantava. Minha irmã ficava com dó e acabava sucumbindo.
Até que um dia minha irmã viajou e ficamos só eu e dona Alice em casa. No primeiro dia que ela veio me pedir para levá-la a algum lugar, ouviu: "Mãe, você já foi lá mil vezes, sabe onde é. Você tem carta de motorista, o carro está com o tanque cheio e você sabe onde está a chave. Vai sozinha."
(culpa, culpa, culpa)
Ela foi. Fez o que tinha que fazer e voltou, inteira. E com um sorriso no rosto, orgulhosa, porque tinha conseguido ir sozinha, sem depender de ninguém. E naquele carro imenso, que mete medo até em marmanjo que nunca dirigiu um.
Hoje, ela enfrenta valente as avenidas congestionadas, descobre atalhos aqui e acolá, e até pega estrada sob neblina. Quando ela me pede para levá-la a algum lugar, eu levo, vez ou outra. Mas quando percebo que os pedidos estão ficando frequentes, digo "não". Dona Alice não hesita: pega a chave, o documento do carro (como motorista responsável que é) e vai embora. Volta sempre com cara de quem conquistou a cidade - o que não deixa de ser um pouco verdade.
Hoje ela saiu cedinho para fazer compras no centro e voltou em tempo recorde, esbaforida, carregada e feliz. No almoço, soltou: "Filha, ainda bem que você não faz todas as minhas vontades. Se você sempre me levasse para cima e para baixo, eu ia encostar em você e não teria coragem de dirigir por São Paulo."
Como num passe de mágica, minha culpa sumiu.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

reforma

Todo dia eu agradeço a Deus por estar cercada de gente sensata. Meio impulsiva, com um pé na truculência, se deixarem, eu passo por cima de quem estiver na frente como um trem desgovernado.
O que é hoje o Bazar da dona Alice foi, por muito tempo, o lar da Família Liang. Nós morávamos na parte de trás da loja: no andar de baixo tinha uma sala, dois banheiros, uma cozinha e um quintal; no andar de cima, dois quartos e uma varanda.
Pode parecer uma casa grande, mas não era. Para cinco pessoas, era uma casa até bem pequena. Eu e meus irmãos dormimos no mesmo quarto até a adolescência. Mas na época, uma casa pequena ou grande não importava. Era a nossa casa e foi lá que minha mãe deu grandes jantares e recebeu amigos queridos. Foi lá que ela nos viu crescer, amadurecer e virar adultos. Era lá que ela ainda morava quando meu pai faleceu, em 2004.
Naquele mesmo ano, ela se mudou.
Em 2008, minha irmã resolveu fazer uma reforma na loja, que nunca tinha passado por uma desde sua inauguração em 1976. Uma reforma daquelas bravas, de colocar tudo abaixo para levantar de novo.



E já que já estávamos com a mão na massa, por que não levar o quebra-quebra lá para dentro, renovar tudo, aproveitar melhor o espaço?
A proposta não foi bem recebida. Minha mãe não queria de jeito nenhum. Não conseguia explicar por que, mas não queria. Bateu o pé. E eu, sempre truculenta, já parti pra briga. Mas por que não? Quem não quer um lugar mais bonito, mais novo, mais legal?
Diante do impasse, a resposta veio do meu então-candidato-a-cunhado: "Reformem a loja, deixem lá dentro como está."
"Mas...", disse eu.
"Mas...", disse minha irmã.
"Mas nada. Reformem a loja e deixem lá dentro como está", ele insistiu.
O que minha mãe quis dizer, e que meu cunhado soube entender sem precisar de palavras, foi isso: ao reformar a casa, nós acabaríamos com as referências de uma vida toda que ela havia vivido no Brasil. Os 30 anos com meu pai, nossa infância e adolescência, tudo que tinha valor sentimental para ela deixaria de estar num lugar que ela poderia visitar para ficar apenas na memória.
A loja foi reformada em tempo recorde e nem parecia o bazar da dona Alice, tão caprichada foi a reforma. Muitos clientes que não acompanharam a mudança achavam que tinham errado de loja. Só se convenciam quando viam dona Alice vir dar as boas-vindas, sem caber em si de felicidade.



Lá dentro, tudo continuava no mesmo lugar: os armários, os cadernos escolares, as roupas do meu pai. O piso vermelho no quintal, o chão de taco nos quartos. A velha mesa de jantar, as estantes cheias de revistas empoeiradas. Mas minha mãe não podia estar mais feliz.

no campo belo

Dona Alice tem um carinho especial pelo Campo Belo. Foi aqui que construiu sua vida, depois da ralação inicial de imigrante recém-chegada ao Brasil. Eram os anos 70, ela não falava português, mas nem por isso se intimidava. Começou vendendo roupas de porta em porta, carregando o bebê na barriga que só fazia crescer. Ia tomando os diferentes ônibus para ver onde eles paravam. Desbravar novos bairros era uma grande aventura.
Foi no Campo Belo que ela acabou se estabelecendo. Abriu sua loja e foi atrás dos balcões dessa loja, que já tem 34 anos, que viu o Campo Belo crescer. Com o tempo, os primeiros clientes, já mais velhos quando minha mãe começou o negócio, foram envelhecendo e morrendo. Seus filhos continuaram comprando no bazar da dona Alice. Agora os netos.
"Dona Alice, meu pai perguntou se eu posso pegar esse carrinho e depois ele passa para pagar", dizem os meninos, que hoje parecem crescer mais rápido que antigamente.
"Lógico!", diz sempre minha mãe. "Pode levar."
Confiança de anos na vizinhança. Eles sempre passam para pagar.
O Campo Belo hoje cresce também como bairro. As casas de vovó estão dando lugar a prédios de alto padrão, trazendo novas famílias para a região. Todo dia abre uma loja nova, um salão de beleza novo, um pet shop novo. O número de carros, cães e carrinhos de bebês nas ruas só aumenta.
E dona Alice assiste orgulhosa, como se fosse parte de tudo.
Nesses últimos tempos, passear pelo bairro é um de seus passatempos favoritos. Quando está sol, ela chama a Aretha, nossa golden retriever, e anuncia: "Vou ver se está tudo bem com o Campo Belo". Como se o Campo Belo fosse um parente querido.
Dona Alice sai pelas ruas, conversa com as pessoas, se atualiza dos netinhos e divórcios da vizinhança, confere lojas que abriram e fecharam, vê quais casas foram postas à venda, ora lamenta, ora comemora os prédios que não páram de pipocar.
E volta cheia de novidades para contar.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

ouvir chinês

Tem coisas de que a gente nem se dá conta na mãe da gente.
Hoje, por exemplo, a Internet da loja da minha mãe deu pau. Não funcionava por nada no mundo. Tiramos todos os cabos, reconectamos tudo... e nada. Minha mãe estava desolada, porque falar com minha irmã, que mora no exterior, pelo Skype é um dos pontos altos do dia.
Chamamos o técnico, que prometeu aparecer logo depois do almoço, "lá pelas 13h30". Chegou na loja quase às 17h. Mexeu daqui, fuçou de lá, descobriu que o problema era no modem. A TVA vem amanhã consertar. Problema resolvido. Um sorriso se esboçou no rosto de dona Alice. Esperançosa de que Adauto podia dar um jeito em todos os computadores da casa, ela arriscou: "Você não pode instalar a PPS TV no meu laptop?"
PPS TV é um programa que transmite novelas chinesas (ou japonesas, ou coreanas) no computador. Ela já queria o programa fazia tempo, mas tinha ficado com medo de pedir para um dos três filhos, sempre tão ocupados, instalar no laptop dela, que, de tão velhinho, funciona quase a manivela. Culpa.
"Sinto falta de ouvir chinês. Depois que seu pai morreu, eu nunca mais falei chinês em casa. Na loja eu só falo português. Falo com vocês em português. Assisto a novela em português. Sinto saudade de ouvir chinês, sabe?"
O desabafo me pegou de surpresa. É tão natural vê-la falando português que nunca havia me ocorrido que ouvir chinês era algo que lhe fizesse falta. Com a morte do meu pai ela perdeu também o convívio com a língua materna, familiar, a língua em que ela se emociona. E as duas ausências doem no mesmo lugar.