quinta-feira, 14 de outubro de 2010

tiger woods chinesa

Dona Alice não é virginiana, mas é irritantemente perfeccionista. E competitiva. Não gosta de perder nem em corrida de saco em festa de junina.
Faz mais de dez anos que minha mãe joga golfe. Começou para acompanhar meu pai, com tacos emprestados. Logo pegou gosto pela coisa e viu que jogava bem. Participou de campeonatos, representou seu clube no exterior e ganhou inúmeros troféus, que exibe orgulhosa sobre o piano.
Depois que meu pai faleceu, dona Alice quis parar. Tinha medo de dirigir até o clube, em São Bernardo do Campo. Além disso, todos do seu círculo de amigos eram casais - quem seria seu parceiro nos jogos? Todo mês ensaiava cancelar seu título, mas a paixão pelo esporte falava mais alto. Resolveu mantê-lo e hoje cuida de seus tacos como se fossem de cristal.
Só que para dona Alice não vale apenas jogar. O ditado "O importante é competir" não diz absolutamente nada para ela. Importante mesmo é ganhar. Mas sem tempo para praticar, estava fazendo feio aos domingos, quando joga para valer com os amigos.
Foi na expansão do Campo Belo que dona Alice encontrou a solução para o problema.
O Campo Belo é hoje um bairro em crescimento. Grandes incorporadoras invadiram a região, compraram as casinhas que estavam aqui há décadas e todo fim de semana há um lançamento novo. E junto com os modelos decorados são também construídos gramados, mantidos até o início das obras. Gramados imensos, com alguns desníveis estratégicos, verdejantes, bem cuidados.
Dona Alice não teve dúvida: escolheu o empreendimento com gramado mais bonito e lá foi pelas ruas do bairro, com viseira e luva, carregando o case cheio de tacos e uma sacola cheia de bolinhas de papel, para treinar seu swing.
Os vigias dos terrenos no início achavam curioso - quem era aquela senhora de olhos puxados, que vinha cedinho, com uma infinidade de tacos, conseguia bater 200 bolinhas de papel em pouco mais de uma hora e depois saía pelo gramado recolhendo todas elas? Depois passaram a achar divertido. Alguns até começaram a deixar o lugar mais limpinho no dia anterior para que minha mãe pudesse praticar. Minha mãe, grata, dava gorjetas gordinhas.
Dona Alice já mudou algumas vezes de campo no bairro. As obras começam e ela é obrigada a encontrar outro gramado para treinar suas tacadas. Achou um que agora chama de "meu campo": uma área verde, de esquina, numa subida, cercada por um muro baixinho. O dono do terreno se recusou a vendê-lo à incorporadora, que levantou o prédio mesmo assim. Agora dificilmente conseguirá se desfazer dele.
Nesse campo, dona Alice pratica com bolinhas de verdade. Quando erra a tacada, a bolinha bate na árvore, perde velocidade, passa por cima do muro e sai pingando pela rua, para completa confusão dos passantes, que não entendem de onde elas vêm. Algumas pessoas, achando que as bolinhas não têm dono, guardam-nas no bolso, só para encontrar dona Alice lá na frente, toda equipada, a Tiger Woods chinesa. Todos se prontificam a devolver as bolinhas, mas minha mãe deixa que levem - uma pequena cortesia por usar o gramado alheio.
Os treinos têm dado resultado. Já faz algum tempo que dona Alice volta para casa feliz de seus jogos aos fins de semana. Entra em casa e vai direto para o tanque, limpar seus equipamentos. No dia seguinte, se estiver sol, pega tudo de novo e vai treinar algumas tacadas em seu campo.

3 comentários:

  1. Visito sempre seu bolg e adoro suas histórias! Fiquei mesmo imaginando a senhorinha equipada indo para o treino, fooofa!
    Parabéns!

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  2. Lili,

    Entrei no seu blog por indicação do Fernando Nogueira e adorei. Estive fora do Brasil por um semestre, longe de família e amigos, e fiquei mega-emocionada lendo alguns dos textos. Acho que minha mãe e Dona Alice iam se dar bem :)

    Beijo grande!

    Cinthia Sento Sé

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