segunda-feira, 1 de novembro de 2010

piquenique no cemitério

Um dos meus maiores suplícios quando eu era pequena era ir ao cemitério no dia de Finados.
Não que eu ficasse impressionada com a morte ou coisa do gênero. Longe disso. Minha maior preocupação era com o que as outras pessoas iam pensar do nosso piquenique sobre o túmulo da minha bisavó.
Explico: na cultura chinesa budista, depois que a pessoa morre, ergue-se um pequeno altar para ela dentro de casa. Lá você coloca uma foto do falecido e uma imagem do Buda (ou alguma variação do gordinho sorridente), que são reverenciados com a queima de incenso, no começo e ao final do dia. Duas vezes por mês são colocadas no altar frutas ou outras guloseimas - uma oferta singela para quem não está mais conosco. Depois que o incenso acaba de queimar, a comida pode ser consumida.
No dia de Finados fazíamos exatamente o mesmo ritual, só que a céu aberto e com uma pequena plateia. Chegávamos cedo, com todo o aparato no Cemitério Getsêmani, no Morumbi: flores, incenso, muita comida e um mundaréu de gente, porque famílias chinesas nunca são pequenas.
Enquanto os adultos ajeitavam as flores e a comida - ovos cozidos, frutas de todo tipo, nomi-fan (uma espécie de bolinho de arroz grudento, que pode ser doce ou salgado) - sobre o túmulo de minha bisavó, as crianças pequenas apostavam corrida pelo cemitério. As mais velhas, como eu, iam de lápide em lápide fazer as contas para saber com quantos anos a pessoa tinha morrido. Se fosse muito jovem, tentávamos adivinhar a causa da morte e criávamos histórias mirabolantes, no melhor estilo "Venha ver o pôr-do-sol", conto de Lígia Fagundes Telles.
Quando tudo estava pronto, nós éramos chamados para "bai-bai": cada um recebia o incenso aceso e, segurando-o na frente do corpo com as duas mãos, fazia a reverência à bisavó. Depois que todos houvessem passado diante do túmulo, a comida era distribuída, o bate-papo engatava e a ocasião se transformava num grande piquenique. Os visitantes e funcionários do cemitério observavam, sem disfarçar, aquela cena que parecia fora de lugar. E eu, no meu desconforto adolescente, nunca comia nada: achava tudo absolutamente constrangedor.
Ontem pela manhã cumprimos novamente nosso rito anual de dia de Finados. Mas passados tantos anos desde minhas primeiras visitas ao Getsêmani, não levamos flores apenas para minha bisavó. Esse ano levamos seis vasos de crisântemos brancos, inclusive para meu avô e meu pai, que nos deixaram cedo demais.
O resto da família foi chegando aos poucos: as matriarcas carregadas de flores, os anciãos cada vez mais curvados, primos da minha geração acompanhados da prole, que explorava feliz os gramados enormes e coloridos. As flores foram colocadas nos diferentes túmulos, enquanto as últimas notícias do ano eram trocadas com detalhes e risadas. Não havia um pingo de tristeza naquele encontro.
Foi aí que me dei conta: com o tempo, o dia de Finados se tornou para nós uma espécie de Thanksgiving. É a única data no ano em que encontramos todos da família, em que colocamos a vida em dia com pessoas queridas, mas que infelizmente encontramos pouco.
Esse ano houve piquenique no cemitério também. Menos organizado, porque as crianças não são mais tão obedientes, nem tão chinesas quanto minha geração. Mas como nos velhos tempos, os anciãos ajeitaram as flores e a comida sobre o túmulo da bisavó e um a um, os adultos pegaram o incenso e fizeram uma reverência a ela.
Depois que o último incenso acabou de queimar, a comida foi distribuída entre as quase 40 pessoas presentes. E eu, pela primeira vez, me arrisquei a pegar alguma coisa, enquanto tentava explicar a um tio-avô por que continuava solteira.

Um comentário:

  1. genial, Lili, genial. tenho gostado cada vez mais das suas histórias líricas (e divertidas tb). beijo grande!

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