segunda-feira, 4 de outubro de 2010

celme

Antes de dona Alice havia a dona Celme.
Celme foi uma das pessoas de coração gigante que minha mãe encontrou na época em que vendia roupas de porta em porta. Bonita e dona de um irresistível sotaque mineiro, Celme morava numa casa de esquina no Campo Belo. Em seu quintal se erguia uma jabuticabeira imensa, que ainda hoje continua de pé. Seus dois filhos, Roberto e Silvana, tinham quase a idade de minha mãe. Ninico, seu marido, tinha uma linda cabeleira grisalha, dirigia uma perua escolar e era testemunha de Jeová. Na casa deles viviam três vira-latas simpáticos: Pelé, Pitu e Menina.
Celme era uma das melhores clientes de dona Alice: gentil, generosa e boa pagadora. Durante as compras, com frases curtas, gestos e risadas, foram se aproximando. Até que um dia, apontando para o barrigão que anunciava a chegada iminente do bebê, Celme brincou:
- Quando o bebê nascer você me dá?
Minha mãe riu, disse que sim e continuou tratando de negócios.
Quando eu tinha pouco mais de um mês, dona Alice apareceu na porta de Celme, bebê no colo. Celme tomou um susto. Explicou que estava brincando, que não podia ficar comigo, mas que poderia cuidar de mim se minha mãe quisesse.
E foi assim que ganhei minha primeira e única babá. No primeiro ano, minha mãe ia trabalhar e voltava a cada três horas para amamentar. Quando passei a tomar mamadeira, o já esporádico convívio com meus pais ficou ainda mais raro: eles me deixavam na casa de Celme ainda cedo, enquanto eu ainda estava dormindo; iam me buscar tarde da noite, quando eu já estava dormindo. Eu quase nunca os via.
Com Celme, tive uma educação completamente brasileira: falava só em português, aprendi a comer de garfo, adorava groselha e tinha medo da Cuca, do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Celme foi minha primeira referência materna e foi ela a quem eu, por anos, chamei de mãe. Dona Alice era "Mamãe Alice" (fato que ela mesma conta, não sem um quê de tristeza).
Quando completei quatro anos, minha mãe finalmente conseguiu comprar a casa que se tornaria o bazar. Agora ela poderia cuidar dos filhos como gostaria (a essa altura meu irmão já tinha dois anos) e passaria mais tempo com eles, sem a ajuda de uma babá.
A transição, no entanto, foi difícil. Eu estranhava a casa nova, não entendia chinês e sofria com a severidade de meu pai. Na volta da escola, seu Roberto fazia o caminho mais longo para que eu não visse a casa de Celme. Frustrados, meus pais se desesperavam por não conseguir explicar a situação à filha que parecia nunca parar de chorar.
Celme também sentia nossa falta. Telefonava sempre, queria saber como estavam as coisas. Ninico passava aos sábados, depois das reuniões no Salão do Reino, para matar as saudades. Quando ele ia embora, eu torcia para que me levasse junto.
Com o tempo, os adultos perceberam que a separação não era boa para ninguém. E, como num acordo que dispensava palavras, as duas famílias se uniram, as crianças (a essa altura, minha irmã já havia nascido) o elo entre pessoas tão diferentes. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, Celme adotou a família chinesa. Cozinheira de mão cheia, os almoços de domingo em sua casa foram por muito tempo uma tradição, com direito a corrida de F-1, macarronada e frango assado e soneca na rede após a comilança. É uma das minhas memórias mais vívidas de infância.
Não sei quando deixei de chamar Celme de mãe e Ninico de pai, mas a nomenclatura não mudou o sentimento. Com eles dividi grandes momentos: aniversários, Dias das Mães, Dias dos Pais, Natais, formaturas.
Mas o tempo passou e a vida foi acontecendo: eu e meus irmãos fomos explorar o mundo, meus pais fizeram outros amigos na comunidade chinesa que crescia em São Paulo e os encontros ficaram menos frequentes.
Ninico faleceu em 2003, um ano antes de meu pai. Celme hoje tem quase 80 anos, mora num prédio baixinho em Moema, mas não sai tanto quanto antigamente. Diz que não tem mais tanta energia. Seu coração, no entanto, continua grande. Mesmo com a saúde um pouco frágil, atravessava a cidade para visitar tia Delta, sua irmã mais nova, que faleceu há duas semanas de câncer. E ela nunca, nunca esquece de nossos aniversários.

3 comentários:

  1. como se não bastasse ter uma mãe como a dona alice, a gente ainda teve a chance de ter uma mãe como a dona celme. Junte todos os 200 milhões de brasileiros e todos os 1 bilhão-e-lá-vai-cacetada de chineses e não dá metade da sorte que três chineses-brasileiros como nós tivemos. Belo post jiejie.

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  2. confesso que estou com lágrimas nos olhos, sua danada

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  3. Muito bom saber mais uma das trocentas histórias da sua vida. Deu vontade novamente de conhecer toda sua família, incluindo Dn Celme! :)

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