domingo, 10 de junho de 2012

a partida

O telefone tocou às 16h do sábado. Minha avó, que morava em Taiwan, há tempos já dava sinais de que não duraria muito tempo. Com quase 90 anos e na cadeira de rodas, já estava bem debilitada. Segundo os médicos, era só uma questão de tempo.
No dia 04 de dezembro minha tia ligou para dizer que o fim parecia próximo, era melhor minha mãe se preparar para uma viagem de emergência. Compramos a passagem e no dia seguinte, dona Alice estava num avião da Swiss Airlines rumo a Taiwan.
Não era a primeira vez que minha mãe passava por isso. Em janeiro de 1986 ela também recebeu uma ligação de Taiwan, avisando que seu pai, que há anos sofria de um câncer de estômago agressivo, não aguentaria por muito tempo. Dona Alice não pensou duas vezes: comprou uma passagem a preços exorbitantes e embarcou assim que pôde. Meu avô, que nunca conheci, aguentou mais uma semana. Faleceu com minha mãe, sua primogênita e filha preferida, ao lado dele.
Não sabíamos se esse seria o caso com minha avó. Primos e tios nos passavam updates da condição dela via MSN e Facebook (a beleza da tecnologia), já que minha mãe estaria incomunicável pelas próximas 30 horas. As atualizações eram otimistas: tudo indicava que ela resistiria mais alguns dias.
Não resistiu. Minha avó faleceu duas horas antes de dona Alice pousar em Taipei. No aeroporto, sua família a esperava com as notícias. Por tão pouco, dona Alice não conseguiu se despedir.
Quem nos avisou aqui no Brasil foi minha irmã, que mora na Suíça.
- "Mamãe ligou aqui chorando e disse que a A-Ma faleceu duas horas antes de ela chegar. Não deu tempo de ela se despedir. Ela disse que a A-Ma não quis esperá-la." Minha irmã também chorava.
Minha mãe sempre carregou consigo uma culpa: a de não ter cumprido seu papel de filha mais velha. Mudou-se cedo para o Brasil e deixou a responsabilidade de cuidar de seus pais na velhice para sua terceira irmã, que foi a fiel escudeira de minha avó até sua morte. Aquele era o castigo final. Na imaginação vívida de minha mãe, minha avó não a havia esperado de propósito. Uma merecida punição pelos anos de ausência.

Como manda a tradição chinesa, minha avó não foi enterrada imediatamente. A melhor data para o enterro precisava ser escolhida e durante quase três semanas, o caixão ficou fechado em casa. Minha avó morava no interior de Taiwan e sua casa, como a nossa aqui no Brasil, ficava nos fundos de um comércio: um armazém, conhecido por toda a cidade, e que com o tempo passou a ser mais fonte de distração do que lucro de fato. Uma espécie de sala de estar aberta ao público.
A notícia da morte de minha avó correu a vizinhança e todos foram prestar homenagens, como num velório que se estende por dias a fio. A tradição exige que um membro da família fique sempre junto com o caixão. Tios, primos e agregados se revezavam na tarefa durante o dia. O turno da noite ficou reservado para minha mãe. Com o fuso horário ainda fora de sincronia, a missão caiu como uma luva para dona Alice.
E nessas noites, minha mãe lentamente redescobriu sua própria família, que há tempos havia deixado para trás. No silêncio das madrugadas, tornou-se confidente de seus sobrinhos, relembrou histórias de infância com suas irmãs e se atualizou das notícias do bairro onde cresceu. A dor de não ter conseguido se despedir ainda apertava o coração, mas dona Alice aos poucos se deu conta de que minha avó não havia lhe deixado uma punição, mas um presente: naquelas noites ao lado dela, minha mãe reencontrou suas origens.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

descrições

Engraçadas as expressões que as pessoas usam para descrever outras. Numa troca de emails recente sobre uma proposta de trabalho, a moça que me escreveu acabou me encaminhando - acidentalmente, imagino - uma outra mensagem, onde eu era descrita como a "chinesa que tem MTB". Morri de dar risada, porque já fui descrita de várias maneiras, mas nunca como uma chinesa com um registro profissional.
Contei para dona Alice, que também caiu na gargalhada. Começamos a conversar sobre como o email certamente tinha chegado a mim por engano, porque, embora engraçado, me parecia pouco polido se referir a alguém dessa forma numa mensagem profissional.
Dona Alice, conhecedora do temperamento da filha, não perdeu tempo:
- Mas Li, melhor ser a chinesa que tem MTB do que a chinesa que tem TPM, né?
Caso encerrado.

originalidade

Os Natais das crianças Liang nunca foram muito parecidos com os que víamos na TV. Árvore de Natal começamos a ter só depois de grandes - com todas as mercadorias, nossa casa, que ficava nos fundos da loja, não tinha espaço para mais nada. Os presentes eram escolhidos do bazar mesmo, na manhã do dia 25, quando algum brinquedo legal ficava nas prateleiras. Papai Noel dizendo Ho-ho-ho era praticamente uma lenda urbana.
Quando era pequena, a falta de clima de Natal em casa me incomodava. Via os clientes num frenesi de compras, escolhendo uma infinidade de presentes para seus filhos - brinquedos que nós, crianças, ajudávamos a escolher e empacotar - e pensava: "Puxa, eu também queria um Natal assim...". Lembro-me de uma véspera de Natal que passei chorando. Devia ter uns sete anos. Depois que as lágrimas secaram, resolvi que não adiantaria nada ficar sentada na cama me lamentando. Tinha que partir para a ação. Maquinei um plano mirabolante para fugir de casa e encontrar uma família que me proporcionaria um Natal como aqueles que eu via nas propagandas de supermercado. Quando já tinha tudo planejado em detalhes na minha cabeça, meu plano desmoronou diante do obstáculo supremo: e se tivesse uma barata na loja?
Acabei desistindo e caí no sono. O Natal passou e a vida seguiu.
Hoje, tantos anos depois, já desenvolvemos as nossas próprias tradições natalinas, que embora em nada lembrem os anúncios da TV, representam a nossa comemoração e o nosso espírito de gratidão por mais um ano que se vai. A troca de presentes nunca foi grande parte disso.
Mas dona Alice sempre surpreende. Ano passado, depois de um dezembro conturbado, com viagem inesperada a Taiwan por causa de minha avó e o cansaço típico da última semana pré-Natal, minha mãe interrompeu nosso jantar de Natal para me dar um pacotinho, embrulhado no papel de presente do bazar.
- "O que é isso, mãe?" - disse, entre uma garfada e outra de bacalhau.
- "Abre, filha! É o seu presente de Natal!"
Quando abri, era uma caixinha de madeira que eu havia trazido para ela de Moçambique. Olhei para ela confusa. Ela estava me dando um presente que eu havia dado a ela? Dentro, um bilhetinho. E nele, meu presente de Natal.



"Querida filha: Feliz natal. Vale de uma (bolsa de couro) para você. Presente de natal. Mamãe te amo muito. Liang Yi Mei"

Dona Alice vivia reclamando que eu andava sempre com a mesma bolsa surrada. O vale-bolsa foi a forma mais prática que encontrou de me presentear. Com uma boa dose de criatividade e bom humor, minha mãe arrancou de mim um sorriso que não conseguiria com nenhum outro presente.
Ela bem que tentou me arrastar até o shopping para trocarmos o vale-presente. Fomos algumas vezes, mas não consegui achar nada. Nenhuma das bolsas me parecia tão bonita quanto aquele bilhetinho que havia recebido. Acabei ficando com minha velha bolsa (em atividade até hoje) e guardei o vale com carinho na minha caixa de cartas.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

lucky long long

Long Long foi atropelado às 9h da manhã do dia 3 de janeiro. Um filhotinho de vira-lata, que resolveu mudar de ideia no meio da avenida movimentada. Meu irmão não teve tempo de brecar. Ao perceber o que havia acontecido, parou o trânsito para socorrer o pobrezinho. Comoção na rua Funchal, no Itaim. Algumas pessoas pararam para ajudar. Uma moça se colocou à disposição para ajudar no que fosse preciso. Uma senhora fez questão de acompanhar meu irmão numa terça-feira passada entre consultas, exames e radiografias, que constataram que o cãozinho havia sofrido uma fratura e precisaria de cuidados especiais. Passou três dias no hospital e foi batizado de Long Long - dragãozinho, em chinês. 2012 é o ano do dragão.
Eu e dona Alice, em férias em Santa Catarina, soubemos da saga através de um telefonema desesperado de meu irmão, pedindo o telefone da veterinária. Recebíamos updates detalhados à medida que a condição do cãozinho melhorava. Long Long, no final daquela semana, já estava fora de perigo.
E no final daquela semana, meu irmão também já estava completamente apaixonado por ele. Era um filhote de boa índole, dizia ele. E se olhasse bem, dava para ver que ele tinha algo de golden retriever, continuava. "Li, você não quer sondar com a mamãe se a gente não pode ficar com o Long Long?"
Não precisei ir muito longe. Dona Alice na hora sacou nosso plano genial e acabou com ele com um "não" categórico: não havia espaço para mais um cão na casa; a Aretha não ia gostar da competição; e no final das contas seria mais um cachorro sob responsabilidade dela.
O que ela não esperava é que o cãozinho fosse, de fato, tudo aquilo que meu irmão dizia. De volta a São Paulo, fizemos uma campanha online para encontrar um dono para Long Long. Já recuperado do susto mas ainda não 100%, ele passava os dias na loja, atrás do balcão. E bastaram dois dias para ele cair nas graças de dona Alice e dos clientes.
- "Vocês sabiam que ele me segue para onde eu for?"
- "Hoje ele conseguiu dar a volta em meio quarteirão! A patinha está melhorando."
- "Passou aqui um senhor querendo adotá-lo, mas acho que devíamos ficar mais um pouco com ele..."
Long Long recebeu tratamento VIP. Em sete anos, nossa golden retriever nunca viu um pedaço de carne. O cachorrinho acidentado foi tratado a arroz, frango, cebola e shoyu durante toda sua estadia.
Depois de quase duas semanas, Long Long foi adotado por um casal simpático que - surpresa! - caiu de amores por ele logo de cara. Beatriz, que acompanhou e auxiliou na história desde o início, e seu marido Gustavo se encarregaram dos cuidados que ele ainda precisava receber e o levaram para morar num sítio lindo, cheio de espaço, onde ainda teria a companhia de três pastoras alemãs para a folia.
Na hora da despedida, dona Alice quase não conseguiu conter as lágrimas. Fez uma marmita para o Long Long, brincou mais um pouquinho com ele, mas não conseguiu acompanhá-los até o elevador. Sentada no sofá, olhos marejados, confessou: "Puxa, estou arrependida de não ter ficado com ele."
Long Long, por sua vez, sarou completamente, ganhou uma nova família e mudou de nome: Lucky. Não tinha como ser outro.


segunda-feira, 2 de abril de 2012

dia de festa

Aretha, nossa golden retriever, completou sete anos em setembro do ano passado. E na ausência de crianças na família - para desespero completo de dona Alice - as festinhas são dadas para ela. Essa história começou quando ela fez seis anos e fizemos um ímã de geladeira para distribuir aos clientes que são fãs de nossa mascote.
Para o seu sétimo aniversário, a comemoração foi mais elaborada. Além do ímã de geladeira teve também lembrancinha: florzinhas de balas de goma, criação da Cema, rainha das invenções.
E teve festa non-stop. Um que passava, afagava, outro que vinha dar um biscoitinho. Aretha ganhou carinho e presentes o dia todo. Teve até uma cliente que apareceu na loja perguntando se haveria festa.
- "Como você sabe?"
- "Ué, hoje não é aniversário da Aretha? Tenho o ímã do ano passado na minha geladeira!"
Aretha chegou em nossa casa com pouco mais de dois meses e já completou sete anos. E é estranho pensar que usamos o mesmo calendário para marcar datas tão opostas: Aretha chegou exatamente um mês depois de meu pai ter partido, no final de 2004.
Nesses sete anos, Aretha mostrou que pode haver alegria depois da tristeza. E mostrou que a vida é assim, feita de altos e baixos, momentos bons e ruins. Até ela, que nos resgatou de um abismo do qual achávamos que não sairíamos, já passou por isso: dois tumores, duas cirurgias, pós-operatórios de deixar qualquer um de cabelo em pé e a prova de quem nem só os gatos têm sete vidas.
Hoje Aretha é uma jovem senhora e seu rosto começa a ficar branco. Não corre com o mesmo vigor, se cansa bem mais facilmente. Mas ainda é a fiel escudeira de minha mãe e a maior atração do bazar da dona Alice. Aretha segue ensinando que a vida é bem mais simples do que pensamos: com boa comida, água limpinha, um pufe fofo, amigos queridos e muito carinho, não dá para querer muito mais.
Parabéns, Arethinha! E que venham os próximos sete!



"Hoje vai ser uma festa!"

Cema e Camila, responsáveis pelas florzinhas

é pique, é pique!

Dona Alice e Camila

Rosa, cachorreira assumida, ganha um beijoca

Seu Luís, a pessoa preferida do universo

Dona Lúcia, a quituteira do bairro

Todo mundo vira criança para brincar com a Aretha

Louro faz-tudo e o porteiro do prédio cantam parabéns

Aniella, vizinha e amiga querida, ganha beijo da aniversariante

O senhor do prédio de tijolinhos que passa todo dia para ver a Aretha

"Hoje vai ter festa?"

Marli, que arruma a bagunça que a Aretha faz em casa

Eliana, Aretha e BFF (best friend forever) Joy dividem o lanche

Aretha e seu melhor amigo

Passarinho? Onde?

Aretha e o presentinho do seu Luís

As moças do salão de beleza posam com a aniversariante

Aretha ganha mais um afago

E a maior fã da Aretha - notem a folga do cão





quarta-feira, 28 de março de 2012

fantasias

Eu estava na primeira série da Escola União e a ocasião era uma festa em que eu dançaria balé. Não me recordo qual era a data, se Dia das Mães ou festa de fim de ano. A explicação de como fazer a fantasia viera no papel mimeografado, com cheirinho de álcool, escrito em letra de forma. Material, molde, como medir, cortar e colar. Naquela época, as mães ainda faziam as fantasias de seus filhos.
Dona Alice, ainda com pouco domínio do português, fez a fantasia da forma que achou mais parecida com a figura e do jeito que achou mais bonito. Nem me lembro qual era a personagem, se uma margarida ou uma fada. Mas ficou claro quando chegamos ao local da apresentação que minha fantasia não estava igual às outras. E ao me ver diferente, desatei a chorar, num misto de decepção, vergonha e raiva. Participei da dança a contragosto, com a nítida sensação de que todos estavam olhando para aquela menina gordinha, de olhos puxados, maria-chiquinha e a fantasia mais feia de todas.
Dona Alice, sem conseguir conter o choro da filha e sem vocabulário suficiente para consolá-la, prometeu a si mesma que daquele dia em diante estudaria português, diligentemente. Sua filha nunca mais passaria vergonha porque ela não sabia ler.
Minha mãe cumpriu essa promessa ao longo de toda uma vida. Em meio à rotina maluca de loja, casa, marido e filhos, encontrou tempo para ler - e se encantar - com obras como "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway, "Éramos Seis", de Maria José Dupré, e "O Veleiro de Cristal", de José Mauro de Vasconcelos. Lia com o dicionário português-chinês a seu lado e seus livros viviam cheios de anotações. Cumpre a promessa até hoje, ao copiar diariamente, pelo enésimo ano consecutivo, o livro devocional "Mananciais no Deserto".
Mais de três décadas depois, ainda sinto um misto de emoção e vergonha quando ouço essa história. Com apenas sete anos na época, entendo que se tratava da reação de uma criança. Mas me comove que Dona Alice conte esse episódio sem mágoa ou ressentimento, apenas dando risada do seu português hesitante nos seus primeiros no Brasil. E num devaneio, me imagino voltando no tempo, àquele dia, àquela cena. E nela, a pequena chinesa de maria-chiquinhas daria um beijo em sua mãe, agradeceria a roupa diferente e, feliz da vida, sairia dando piruetas desengonçadas diante da plateia, que só teria olhos para a fantasia mais bonita do mundo.