segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

muito prazer, chapeuzinho

No começo de janeiro levei minha mãe a Buenos Aires. A cidade estava lotada, os dias estava lindos, a comida era boa e o câmbio estava 1 para 2. No city tour que fizemos pela cidade, dona Alice sentou na janela e ia conferindo, no meu mapa, todos os lugares que a guia mencionava.
- Aqui, a Plaza de Mayo. À nossa frente, o Obelisco.
Minha mãe observava atenta. Quando os faróis fechavam, ela aproveitava para tirar fotos de prédios, monumentos, igrejas e de placas com os nomes de ruas (Dona Alice gosta de dar a exata localização das coisas quando mostra as fotos a amigas).
- Lá ao longe, as torres da Catedral Ortodoxa Russa. Aqui, do seu lado direito, o estádio do Boca Juniors.
O passeio que durava uma manhã terminava num shopping center no bairro chique de Palermo. No caminho até lá, passamos pelo parque Três de Febrero, no meio do qual se erguia uma estátua em mármore da Chapeuzinho Vermelho, completa com a Vovozinha e o Lobo.
- À sua esquerda, a Chapeuzinho Vermelho. Vejam o lobo escondido atrás dela - indicou a guia.
Minha mãe procurou, procurou e não achou o tal chapéu vermelho de que a guia falava. E lobo? Mas tem um lobo aqui no parque?
E eu, sem entender a confusão de minha mãe e achando que seus óculos estavam fracos, apontava para a estátua:
- Mãe, olha lá, a Chapeuzinho Vermelho. Tá vendo? Ao lado dela está a vovó. E atrás da Chapeuzinho está o Lobo escondido.
Dona Alice apertava os olhos e continuava sem achar.
Foi só então que me ocorreu:
- Mãe, você sabe quem é Chapeuzinho Vermelho?
- Não. Quem é?
Aí me dei conta: já passei horas incontáveis explicando para dona Alice a epidemia da Aids na África, a guerra por diamantes em Serra Leoa, os prós e contras do Bolsa Família, mas nunca tinha me dado ao trabalho de checar se ela conhecia as histórias da carochinha.
Contei a ela rapidamente a história de Chapeuzinho, enquanto o tour chegava ao último destino. Dona Alice ficou absolutamente horrorizada com o fato de o Lobo ter devorado a vovozinha.
Durante o almoço, na praça de alimentação lotada, perguntei:
- E a história dos Três Porquinhos, mãe, você conhece?
- Três porquinhos? Não, conheço só os três macaquinhos, que um é mudo, o outro é surdo e o outro é cego.
Dei risada e comecei:
- Então, era uma vez três porquinhos...
E foi assim que numa tarde ensolarada em Buenos Aires, e com algum atraso, dona Alice foi apresentada aos personagens de minha infância.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

o dia em que dona alice fez um marmanjo chorar

Dona Alice adora um agito. Desde que minha irmã começou a expor suas coleções de pantufas numa feira de calçados, minha mãe espera ansiosamente por janeiro, mesmo que ainda não completamente recuperada do cansaço acumulado em dezembro.
Para os expositores, a feira começa dias antes do início oficial do evento. É preciso acompanhar a montagem do estande, arrumar as vitrines, conferir se o ar-condicionado está funcionando. Em meio à feira semi-pronta, dona Alice parece uma criança na Disney. Percorre os corredores com os olhos brilhando e, horas depois, aparece animada com a lista dos estandes mais bonitos, que merecem uma visita.
Quando a feira começa, a diversão só faz aumentar. Minha mãe adora conversar com clientes, representantes e com quem mais passar desavisado pela porta. Todo mundo que entra é convidado a sentar.
- "Toma uma Coca-Cola, está tão calor... E olha, come um pedacinho de bolo."
- "Eu estava só vendo a vitrine, volto mais tar..."
- "Imagina, come um pedacinho de bolo, é uma delícia. É um bolo chinês, você vai até querer mais."
E as pessoas sempre querem. Se encantam com dona Alice, que tem um arsenal infinito de histórias para contar. E com o bolo, lógico, que é sucesso de bilheteria e já virou até tradição. Quando os representantes encontram clientes na feira, convidam: "Vamos lá comer um bolinho na mãe!". Dona Alice virou mãe dos marmanjos.
Essa feira não foi diferente. A agitação, o entra-e-sai de gente, aquela canseira boa no final da tarde. Tudo ia conforme o protocolo, até a tarde do segundo dia, quando a luz acabou em todo o Anhembi. Pega de surpresa, dona Alice foi obrigada a encurtar seu habitual passeio da tarde pela feira. Só não percebeu que, no meio do caminho, seus óculos caíram no chão. Quando chegou ao estande, já era tarde.
Ficou desolada. A armação cor de rosa da Marc Jacobs havia sido um presente nosso. Eram os óculos que ela usava em ocasiões especiais, para combinar com roupas mais bonitas. Inconformada, dona Alice ficou sentada por horas, cabisbaixa, sem enxergar muito bem, sem falar muito, tentando lembrar por onde havia passado.
Ninguém sabia mais o que fazer para melhorar seu ânimo. Valderi, um representante jovem e boa praça, gaúcho de Erechim, já havia passado nos Achados e Perdidos, mas nem sinal dos óculos. Mas incapaz de assistir àquela tristeza de braços cruzados, ele pegou Cema pelo braço e avisou, enquanto caminhava em direção à porta:
- "Dona Alice, a gente vai achar seus óculos!"
Valderi falou com todos os seguranças que encontrou pelo caminho. Conversa daqui, descreve de lá, repete a história para esse outro. De guarda em guarda, em pouco menos de uma hora ele havia chegado ao segurança que havia encontrado os óculos.
Sem conseguir enxergar, minha mãe nem percebeu quando Valderi, acompanhado do guarda, entrou no estande com os óculos no rosto. Foi só quando minha irmã lhe chamou a atenção que ela pulou da cadeira e o abraçou, depois abraçou o segurança, o sorriso de volta, a alegria incontida, regada a bolo e Coca-Cola.
Comovida, dona Alice passou aquela noite escrevendo uma carta para Valderi, que entregou no dia seguinte, junto com um presente.




Valderi leu a carta, enxugou as lágrimas e disse, com voz engasgada:
- "Dona Alice, a senhora acabou de fazer um homem de cem quilos chorar!"
Com ou sem óculos, dona Alice tem por princípio enxergar sempre o bem nas pessoas. Mas ser surpreendida é sempre bom.