sexta-feira, 26 de novembro de 2010

pequenas burocracias

Acho que a primeira vez que eu preenchi um formulário na minha vida eu tinha nove anos. Eram os cartões de matrícula da Escola União. Eu ia entrar na quarta-série, meu irmão na segunda e minha irmã no pré-primário. Meus pais, com pouco domínio do português e sem tempo para essas burocracias, deixaram a meu encargo o preenchimento das fichas verdes.
Com o tempo, o número de responsabilidades aumentou. Eu tinha que decifrar os comunicados da então Telesp, do Banco Bradesco, do Clube Banespa. Aos 14 anos, já era responsável por ler - e interpretar - resultados de exames e receitas médicas para a família. Fui eu quem confirmei para meu pai, depois de ler cuidadosamente o laudo, que meu avô tinha câncer de próstata.
Eu não me me questionava quanto a essas funções. Para mim, era o que todo adolescente fazia. Era parte do processo de virar gente grande.
Dona Alice nunca prestou muita atenção a essas coisas. Em sua rotina maluca de bazar e filhos, ela não ia a bancos, supermercados, não lia as correspondências oficiais que chegavam em casa. Suas consultas médicas eram marcadas, no início, por meu pai, depois por mim. E ela só ia se fosse acompanhada.
Hoje viúva e com filhos que quase não vê, dona Alice passa por um curso intensivo em vida burocrática. Sem ter quem faça para ela, ela assumiu as tarefas. Ontem, anunciou que havia renovado o seguro do carro. Anteontem, escutei uma conversa dela pelo telefone com a Cielo, negociando o valor da mensalidade. Na semana passada, ela marcou a consulta com o otorrino e foi sozinha até lá. Marcou os exames e foi sozinha até o Delboni fazê-los ("Mas Li, no jejum pode tomar água?"). Na semana retrasada, foi fazer um depósito no Banco Santander, onde nunca tinha posto os pés: "Cheguei lá e fiquei meio perdida. Mas aí perguntei e eles me ensinaram a tirar a senha!" Outro dia, caiu um temporal que acabou com a luz no bairro. A luz voltou logo depois, mas a TVA não. Dona Alice não teve dúvidas: ligou para o número que estava na TV para descobrir o que acontecia e fez a atendente dar uma previsão de quando o serviço ia estabilizar. Quando cheguei em casa, ela assistia a novela das 8, como se nada tivesse acontecido.
É quase um contrasenso: dona Alice cruzou o mundo para chegar no Brasil, fez a vida, criou três filhos, e ainda não conseguia se achar nas pequenas burocracias da vida. Mas está aprendendo. E eu assisto, orgulhosa, minha mãe virar gente grande.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

saci

Da série "Confusões de dona Alice"

Dona Alice mantém religiosamente uma lista de coisas a fazer. Todas as noites ela se senta no sofá, pega sua agenda e começa a enumerar todas as tarefas que precisa cumprir no dia seguinte, seja chamar o encanador para consertar a torneira da cozinha, seja marcar uma consulta com o otorrino, seja rearranjar a vitrine da loja.
Na lista de ontem constava: ligar para a Toyota para comprar novas calotas para a Hilux, que teve as suas roubadas. O ladrão, imagino que por falta de tempo, levara apenas as do lado direito.
À noite, dona Alice me passou o relatório: "Li, hoje liguei lá na Toyota para saber se eles têm as calotas da Hilux. O moço me disse que precisava do saci."
- "Ele precisa do quê, mãe?"
- "Do saci. O número do saci."
- "Mãe, é chassi, não saci. Repete: chassi."
- "Saci."
- "Chassi, mãe."
- "Chachi."
- "Não, mãe. Chassi."
- "Li, me fala logo onde está esse número que amanhã eu vou ligar lá de novo e ver se eles têm a calota."
E foi para a cozinha fazer o jantar.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

piquenique no cemitério

Um dos meus maiores suplícios quando eu era pequena era ir ao cemitério no dia de Finados.
Não que eu ficasse impressionada com a morte ou coisa do gênero. Longe disso. Minha maior preocupação era com o que as outras pessoas iam pensar do nosso piquenique sobre o túmulo da minha bisavó.
Explico: na cultura chinesa budista, depois que a pessoa morre, ergue-se um pequeno altar para ela dentro de casa. Lá você coloca uma foto do falecido e uma imagem do Buda (ou alguma variação do gordinho sorridente), que são reverenciados com a queima de incenso, no começo e ao final do dia. Duas vezes por mês são colocadas no altar frutas ou outras guloseimas - uma oferta singela para quem não está mais conosco. Depois que o incenso acaba de queimar, a comida pode ser consumida.
No dia de Finados fazíamos exatamente o mesmo ritual, só que a céu aberto e com uma pequena plateia. Chegávamos cedo, com todo o aparato no Cemitério Getsêmani, no Morumbi: flores, incenso, muita comida e um mundaréu de gente, porque famílias chinesas nunca são pequenas.
Enquanto os adultos ajeitavam as flores e a comida - ovos cozidos, frutas de todo tipo, nomi-fan (uma espécie de bolinho de arroz grudento, que pode ser doce ou salgado) - sobre o túmulo de minha bisavó, as crianças pequenas apostavam corrida pelo cemitério. As mais velhas, como eu, iam de lápide em lápide fazer as contas para saber com quantos anos a pessoa tinha morrido. Se fosse muito jovem, tentávamos adivinhar a causa da morte e criávamos histórias mirabolantes, no melhor estilo "Venha ver o pôr-do-sol", conto de Lígia Fagundes Telles.
Quando tudo estava pronto, nós éramos chamados para "bai-bai": cada um recebia o incenso aceso e, segurando-o na frente do corpo com as duas mãos, fazia a reverência à bisavó. Depois que todos houvessem passado diante do túmulo, a comida era distribuída, o bate-papo engatava e a ocasião se transformava num grande piquenique. Os visitantes e funcionários do cemitério observavam, sem disfarçar, aquela cena que parecia fora de lugar. E eu, no meu desconforto adolescente, nunca comia nada: achava tudo absolutamente constrangedor.
Ontem pela manhã cumprimos novamente nosso rito anual de dia de Finados. Mas passados tantos anos desde minhas primeiras visitas ao Getsêmani, não levamos flores apenas para minha bisavó. Esse ano levamos seis vasos de crisântemos brancos, inclusive para meu avô e meu pai, que nos deixaram cedo demais.
O resto da família foi chegando aos poucos: as matriarcas carregadas de flores, os anciãos cada vez mais curvados, primos da minha geração acompanhados da prole, que explorava feliz os gramados enormes e coloridos. As flores foram colocadas nos diferentes túmulos, enquanto as últimas notícias do ano eram trocadas com detalhes e risadas. Não havia um pingo de tristeza naquele encontro.
Foi aí que me dei conta: com o tempo, o dia de Finados se tornou para nós uma espécie de Thanksgiving. É a única data no ano em que encontramos todos da família, em que colocamos a vida em dia com pessoas queridas, mas que infelizmente encontramos pouco.
Esse ano houve piquenique no cemitério também. Menos organizado, porque as crianças não são mais tão obedientes, nem tão chinesas quanto minha geração. Mas como nos velhos tempos, os anciãos ajeitaram as flores e a comida sobre o túmulo da bisavó e um a um, os adultos pegaram o incenso e fizeram uma reverência a ela.
Depois que o último incenso acabou de queimar, a comida foi distribuída entre as quase 40 pessoas presentes. E eu, pela primeira vez, me arrisquei a pegar alguma coisa, enquanto tentava explicar a um tio-avô por que continuava solteira.