sábado, 29 de janeiro de 2011

confissão

Eu sempre fui a mais difícil dos três filhos de dona Alice: a filha egoísta, temperamental, briguenta, que falava alto, saía batendo portas, cantando pneus e que conseguia passar meses em greve de silêncio. Eu sempre digo que minha mãe devia ser canonizada por não ter me assassinado durante minha adolescência.
Dona Alice nunca se abalou com meus acessos de raiva. Nunca brigou, nunca levantou a voz. Enquanto eu chorava, me descabelava e culpava Deus e todo mundo pelas injustiças que eu acreditava terem sido cometidas contra mim, ela ouvia, paciente.
Em casa, minha mãe era o equilíbrio na dinâmica familiar. Enquanto meu pai, de personalidade severa, metia medo nas crianças, dona Alice fazia o contraponto - do jeito dela, sem alarde, e sem colocar em xeque a autoridade de meu pai.
Ele achava que eu era nova demais para ter as chaves de casa. Minha mãe me deu o molho sem medo quando fiz 15 anos, num gesto de confiança que até hoje me comove. Quando capotei com o carro de seu Roberto por excesso de velocidade, a única coisa que me preocupava diante do estrago era a bronca que ia tomar dele. Dona Alice, que foi me buscar no local do acidente, me apertava, como se não acreditasse que eu estivesse viva, e dizia que não tinha problema, que "carro a gente compra outro". Quando, depois de uma briga com meu pai, saí de casa, minha mãe foi a primeira a mandar para meu novo apartamento o que ela acreditava ser essencial para sobrevivência: um filtro de água e uma panela cheia de comida. Não importava que eu já tivesse quase 30 anos. Não satisfeita, juntou toda a coragem que tinha para escrever uma carta, desaprovando a atitude de meu pai. Depois, surrupiou uma televisão de sua casa para levar para a minha. Meu pai faleceu achando que alguém tivesse entrado durante a noite e roubado o aparelho - uma pequena contravenção em nome do papel de mãe.
Lógico que nem tudo são rosas nesses 36 anos. Dona Alice tem manias que levam qualquer um à loucura. A demora em sair de casa, por exemplo. "Vamos, vamos, estamos atrasados!", ela apressa. Quando estão todos na porta, chave em punho, são mais dez minutos até que ela mesma fique pronta.
E a teimosia? Quando minha mãe coloca algo na cabeça, não há quem a demova da ideia. E não duvide, porque ela vai conseguir o que quer, não importam os obstáculos e não importa quão maluca seja a proposta. Frases mal-colocadas também já deram origem a brigas. No dia em que passei no vestibular para medicina, uma tarde chuvosa em janeiro de 1993, cheguei em casa feliz, com o rosto pintado e anunciando a notícia. Ouvi de dona Alice: "Estou mais feliz hoje do que no dia em que você nasceu!". A frase reduziu minha alegria pela metade e, por anos, me ficou engasgada.
Depois de tantos anos morando sozinha, já faz quase dois anos que voltei a morar com dona Alice. O saldo da convivência é bom, embora com alguns períodos de turbulência. Às vezes - e isso me preocupa um pouco - sinto que estou mais mansa, que meu temperamento não é o que já foi um dia. Não brigo tanto quanto antes. Escuto e onde antes implicava, deixo passar. Mesmo a frase que antes tanto me incomodava, hoje me enternece. Entendo que foi a única forma que minha mãe encontrou de expressar o tamanho da alegria e do orgulho que sentia naquele momento. Era como se dissesse: "Não dizem que o nascimento de um bebê é a maior alegria que se pode ter? Pois bem, minha alegria hoje é ainda maior!"
A própria dona Alice tem reparado na mudança da megera domada. Talvez seja a idade. Talvez seja a preguiça. Ou talvez seja, finalmente, a sabedoria de que, no final das contas, dona Alice sempre sabe melhor.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

tardes musicais

Eu, por boa parte da minha infância e adolescência, rejeitei tudo que se relacionasse à cultura chinesa. No início, provavelmente por ser uma cultura completamente alheia à criação que recebera de minha babá brasileira. Depois, como uma forma de me encaixar na escola alemã em que estudava. E mais tarde, como uma maneira de protesto por ser obrigada a frequentar aulas de chinês aos domingos.
O que eu não sabia é que, mesmo sem querer, essa cultura que eu tanto recusava seria pano de fundo para muitas de minhas memórias. Lembro-me perfeitamente das tardes de domingo, em que meus pais e alguns amigos, imigrantes como eles, se reuniam na loja (onde era mais fresco), depois dos longos almoços, e passavam horas contando histórias e cantando músicas chinesas que eu não entendia, acompanhando a fita que tocava no gravador.
Esses dias, ouvi numa festa de aniversário uma das músicas que escutávamos naquelas tardes musicais. Descobri que a cantora era Teresa Teng, umas das maiores cantoras de Taiwan, dona de hits românticos conhecidos em toda a Ásia. Eram músicas de que meu pai gostava muito e que minha mãe até hoje canta com voz afinadíssima. Aos primeiros acordes de "Tian Mi Mi", uma das preferidas de seu Roberto, percebi, com surpresa e nostalgia, que sou muito mais chinesa do que pensava (ou gostaria de admitir).