segunda-feira, 30 de setembro de 2013

guru dos negócios

Dona Alice é dona do Bazar Liang há quase 40 anos. Sem nunca ter cursado uma faculdade de administração, tem um dos comércios mais longevos do Campo Belo e tem sacadas que ninguém sabe de onde vêm, mas que funcionam com os clientes.
Loja arrumadinha? Nem pensar. Cliente gosta mesmo é de loja bagunçada, onde se sente mais à vontade para fazer compras sem medo de desorganizar a vitrine.
Prateleiras minimalistas como as de shopping, com um exemplar de cada produto? Jamais. Cliente quer ver variedade, cores, tamanhos, tudo diferente. Cliente gosta de saber que a loja está bem abastecida.
Balcões desimpedidos, sem nada em cima? Não pode. Balcão tem que ter coisa em cima, mesmo que o cliente tenha que mover a pilha de echarpes para ver as carteiras na vitrine. É como se fossem os chicletes perto do caixa do supermercado.
Não conseguimos encontrar comprovação científica para as teorias de minha mãe, mas a verdade é que elas funcionam. Quando a loja está muito parada, por exemplo, ela dispara: "Vamos fazer bagunça". Coloca as balconistas para mudar os produtos de lugar, reorganizar as vitrines, e em pouco tempo o bazar está cheio. Nunca falha.
Graças às suas sacadas, o bazar da dona Alice continua sendo referência no Campo Belo e, do jeito que as coisas vão, em breve será o único remanescente no bairro. Só esse ano dois bazares na rua já fecharam. Numa época em que as compras se concentram em shopping centers, dona Alice consegue manter seu bazar funcionando a pleno vapor.

Em 2005, pouco depois da morte de meu pai, minha mãe teve a ideia de montar um negócio de importação de pantufas. Recém-saída da FGV, minha irmã, que nunca havia se encaixado no mundo corporativo mas que sempre havia gostado de comércio, se juntou a ela. Nenhuma das duas sabia nada de comércio exterior, mas se atiraram de cabeça na empreitada. Erraram daqui, acertaram de lá e com o tempo aprenderam a conduzir o negócio. Dona Alice nunca havia trabalhado com calçados, muito menos com moda, mas seus palpites eram sempre certeiros.
- "Essa cor não vende."
- "Esse modelo de cano alto é muito difícil de calçar. Não vai ter saída."
- "Essa estampa vai fazer sucesso, mas não nessa cor."
Já se vão quase dez anos e as pantufas vão muito bem, obrigada. É minha irmã quem administra o dia a dia da empresa, mas para as grandes decisões sempre pede a opinião de minha mãe. Dona Alice nunca erra.

No ano passado, foi minha vez de me aventurar pelas águas do empreendedorismo. Montei uma editora voltada para publicações médicas - acho que não sei fazer outra coisa -, mas não demorou muito para que eu me desse conta de que revistas eram bem diferentes de pantufas: o público, o período de maturação do produto, o posicionamento no mercado, a logística envolvida. Minha experiência se limitava às questões editoriais. Eu sabia criar uma revista do zero, mas não fazia ideia de como viabilizar uma empresa.
Com a experiência de décadas à frente do bazar, dona Alice me aconselhou como pôde:
- "Faça um valor mais baixo de anúncio para a empresa anunciar a primeira vez."
- "Tente trazer as empresas grandes, assim as pequenas vão querer anunciar também."
Nada funcionou. A revista era um sucesso entre os leitores, mas a editora continuava no vermelho, impávida. Eu, que havia lançado a publicação cheia de esperança e grandes planos, me vi num beco sem saída. Por melhor que fosse a ideia, não fazia sentido continuar investindo se ela só desse prejuízo. Os dias passavam e eu me via cada vez mais decidida a fechar a revista. Tem horas em que é preciso admitir a derrota.
E eis que, no auge do meu desespero, recebo um email de dona Alice:

querida filha;
tudo bem? vi võce trabalha muito ,e nao tem como te ajudar ,desculpe˜me,
como nao  é comercio normal, tipo  pantufa ,,tipo roupa , tipo perfume   ..entao
    só võce mesma tem que enfrentar ;mas eu acredida que lago võce vai ter bom resutado ,
comercio tem um secreto ;;nao tem nada que nao consequir vender ..só nao consequer vender
É PREÇO,,,,
pregio de 1000 netro de aldura ,começo pelo chaõ.,,grande MAR ,água vem de  monte de  riachos pequeno,.......
filha ,,nao se desepeciona ,vai em frente ,lenbra se ;quato võces eram pequena ,caminho que 
ira para GUARUJA ,tinha que passar por monte de TUNHO ESCURO ,depois de tudos tunhos passou ,apareceu na frente É SOL BRILHNTE ,MARAVILHOSA DA ONDA  DANÇANDO  NO MAR.,, PRAI SEM FIM DE AREIA BRANCA ,,,,... filha só passar essa tumho .futuro de revista marvimhosa   estar na frente .
mamae e seus irnaos  apoiamos võce ,em tudo momento ,
te amo muito muito .
um beijo
mamae

Dona Alice não conhece o mercado editorial, mas me deu algo melhor que qualquer dica de negócio: me deu coragem para seguir em frente. A revista acaba de completar um ano e aos poucos vamos saindo da zona de perigo. Os túneis vão ficando para trás e já começo a ver uma pontinha de mar lá longe.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

termos precisos

Da série "Confusões de dona Alice"

Sábados são sagrados para a dona Alice. É o dia da semana em que ela sai para fazer compras, conversar com fornecedores, conferir as novidades para seu bazar. É o dia também em que ela compra papel de presente, embalagens, fitas e sacolas. Minha mãe não dá muita bola para essas coisas - ela nunca ligou muito para embalagens - mas graças à exigência da Cema, que não resiste a fitas coloridas, papeis metalizados e um belo laço, o bazar não faz feio quando se trata de pacotes caprichados.
Esse sábado dona Alice chegou com o carro abarrotado de compras. Além das mercadorias, havia comprado também sacolas para colocar os presentes. Quando abrimos o pacote, no entanto, ao invés das tradicionais sacolinhas brancas, encontramos sacolinhas vermelhas e cor-de-rosa, com um plástico de melhor qualidade. Certamente havia custado o dobro do preço que ela paga pelas outras.
- "Mãe, por que essas sacolinhas tão chiques?"
- "Ah, filha, não consegui passar na loja para comprar as sacolinhas normais. Aí lá perto de onde fui fazer compras encontrei essas aqui, acabei comprando."
- "Mas elas devem ter saído bem mais caras que as sacolinhas brancas."
- "Ah, saíram mesmo, então não é para desperdiçar. É para usar apenas quando tiver um precisão."
- "Precisão, mãe?"
- "É, quando estiver precisando muito. Quando tiver um precisão."

programa inédito

Da série "Confusões de dona Alice"

Geralmente não fazemos as refeições com a televisão ligada, mas nos últimos tempos dona Alice passou a almoçar assistindo à TV. Como almoça sozinha na loja, enche sua tigelinha de arroz e liga o aparelho, muitas vezes mais pelo barulho do que pela programação em si.
Outro dia, entre uma reunião e outra, fui almoçar com ela no bazar. Ela já estava a postos, tigelinha cheia, pratos na mesa e a TV ligada. Começamos a conversar, enquanto a Globo transmitia alguma matéria bobinha, provavelmente algo sobre a Xuxa ou a estreia da próxima novela das seis.
Irritada, dona Alice pegou o controle remoto.
- "Nossa, que besteira. Vamos assistir outra coisa. Que canal tem aquele programa Aretha?", perguntou.
Não entendi o que ela quis dizer. Aretha é o nome da nossa golden retriever. Será que era alguma série sobre animais? Ou algum programa novo sobre cães que ela havia achado enquanto zapeava durante o almoço?
- "Aretha, mãe? Que programa é esse? É sobre bichos?"
- "Não, filha. Aquele programa, como chama... Aretha. Cidade Aretha."