quarta-feira, 28 de março de 2012

fantasias

Eu estava na primeira série da Escola União e a ocasião era uma festa em que eu dançaria balé. Não me recordo qual era a data, se Dia das Mães ou festa de fim de ano. A explicação de como fazer a fantasia viera no papel mimeografado, com cheirinho de álcool, escrito em letra de forma. Material, molde, como medir, cortar e colar. Naquela época, as mães ainda faziam as fantasias de seus filhos.
Dona Alice, ainda com pouco domínio do português, fez a fantasia da forma que achou mais parecida com a figura e do jeito que achou mais bonito. Nem me lembro qual era a personagem, se uma margarida ou uma fada. Mas ficou claro quando chegamos ao local da apresentação que minha fantasia não estava igual às outras. E ao me ver diferente, desatei a chorar, num misto de decepção, vergonha e raiva. Participei da dança a contragosto, com a nítida sensação de que todos estavam olhando para aquela menina gordinha, de olhos puxados, maria-chiquinha e a fantasia mais feia de todas.
Dona Alice, sem conseguir conter o choro da filha e sem vocabulário suficiente para consolá-la, prometeu a si mesma que daquele dia em diante estudaria português, diligentemente. Sua filha nunca mais passaria vergonha porque ela não sabia ler.
Minha mãe cumpriu essa promessa ao longo de toda uma vida. Em meio à rotina maluca de loja, casa, marido e filhos, encontrou tempo para ler - e se encantar - com obras como "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway, "Éramos Seis", de Maria José Dupré, e "O Veleiro de Cristal", de José Mauro de Vasconcelos. Lia com o dicionário português-chinês a seu lado e seus livros viviam cheios de anotações. Cumpre a promessa até hoje, ao copiar diariamente, pelo enésimo ano consecutivo, o livro devocional "Mananciais no Deserto".
Mais de três décadas depois, ainda sinto um misto de emoção e vergonha quando ouço essa história. Com apenas sete anos na época, entendo que se tratava da reação de uma criança. Mas me comove que Dona Alice conte esse episódio sem mágoa ou ressentimento, apenas dando risada do seu português hesitante nos seus primeiros no Brasil. E num devaneio, me imagino voltando no tempo, àquele dia, àquela cena. E nela, a pequena chinesa de maria-chiquinhas daria um beijo em sua mãe, agradeceria a roupa diferente e, feliz da vida, sairia dando piruetas desengonçadas diante da plateia, que só teria olhos para a fantasia mais bonita do mundo.