quinta-feira, 29 de julho de 2010

reforma

Todo dia eu agradeço a Deus por estar cercada de gente sensata. Meio impulsiva, com um pé na truculência, se deixarem, eu passo por cima de quem estiver na frente como um trem desgovernado.
O que é hoje o Bazar da dona Alice foi, por muito tempo, o lar da Família Liang. Nós morávamos na parte de trás da loja: no andar de baixo tinha uma sala, dois banheiros, uma cozinha e um quintal; no andar de cima, dois quartos e uma varanda.
Pode parecer uma casa grande, mas não era. Para cinco pessoas, era uma casa até bem pequena. Eu e meus irmãos dormimos no mesmo quarto até a adolescência. Mas na época, uma casa pequena ou grande não importava. Era a nossa casa e foi lá que minha mãe deu grandes jantares e recebeu amigos queridos. Foi lá que ela nos viu crescer, amadurecer e virar adultos. Era lá que ela ainda morava quando meu pai faleceu, em 2004.
Naquele mesmo ano, ela se mudou.
Em 2008, minha irmã resolveu fazer uma reforma na loja, que nunca tinha passado por uma desde sua inauguração em 1976. Uma reforma daquelas bravas, de colocar tudo abaixo para levantar de novo.



E já que já estávamos com a mão na massa, por que não levar o quebra-quebra lá para dentro, renovar tudo, aproveitar melhor o espaço?
A proposta não foi bem recebida. Minha mãe não queria de jeito nenhum. Não conseguia explicar por que, mas não queria. Bateu o pé. E eu, sempre truculenta, já parti pra briga. Mas por que não? Quem não quer um lugar mais bonito, mais novo, mais legal?
Diante do impasse, a resposta veio do meu então-candidato-a-cunhado: "Reformem a loja, deixem lá dentro como está."
"Mas...", disse eu.
"Mas...", disse minha irmã.
"Mas nada. Reformem a loja e deixem lá dentro como está", ele insistiu.
O que minha mãe quis dizer, e que meu cunhado soube entender sem precisar de palavras, foi isso: ao reformar a casa, nós acabaríamos com as referências de uma vida toda que ela havia vivido no Brasil. Os 30 anos com meu pai, nossa infância e adolescência, tudo que tinha valor sentimental para ela deixaria de estar num lugar que ela poderia visitar para ficar apenas na memória.
A loja foi reformada em tempo recorde e nem parecia o bazar da dona Alice, tão caprichada foi a reforma. Muitos clientes que não acompanharam a mudança achavam que tinham errado de loja. Só se convenciam quando viam dona Alice vir dar as boas-vindas, sem caber em si de felicidade.



Lá dentro, tudo continuava no mesmo lugar: os armários, os cadernos escolares, as roupas do meu pai. O piso vermelho no quintal, o chão de taco nos quartos. A velha mesa de jantar, as estantes cheias de revistas empoeiradas. Mas minha mãe não podia estar mais feliz.

2 comentários:

  1. Não consigo achar as teclas, porque meus olhos estão marejados. Sensível, bonito e revelador até para quem está muito próximo...

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  2. Lindo, Lili, esse resgate de memória e dessas estórias deliciosas que eu amo ouvir desde Angola. Só fico com uma curiosidade: fotos?!

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