quarta-feira, 14 de setembro de 2011

a má educação

Dona Alice admite que em muitos momentos de nossa infância e adolescência teve dúvidas quanto à forma com que nos educava. Seus filhos não falavam mandarim fluente, tinham amigos em sua maioria brasileiros e não conseguiam sair do livro do jardim da infância nas aulas de chinês.
Essas dúvidas ficavam ainda piores quando voltava para Taiwan, porque lá era confrontada com o modelo de educação que teoricamente teria que ter adotado para nos criar. O problema é que, embora seu sotaque continuasse carregado, sua forma de pensar havia se tornado muito mais aberta e flexível ao longo dos anos no Brasil. Ela mesma sentia um certo choque cultural reverso quando retornava à terra natal: seu taiwanês, a língua que usava com a família, era hesitante; palavras em português apareciam aqui e ali; a rigidez com as crianças parecia um pouco extrema e algumas tradições se mostravam um tanto fora de lugar.
Foi numa de suas viagens que dona Alice percebeu o quanto estava distante da realidade que um dia deixara, e que suas irmãs, sobrinhos e sobrinhos-netos ainda viviam. Minha mãe é a mais velha de cinco irmãs (os dois únicos meninos da família morreram tragicamente durante a infância, um de meningite, outro atropelado por um ônibus), sendo que a caçula é 18 anos mais nova que ela. Com exceção de dona Alice, essa irmã caçula foi a única que saiu da cidade de interior onde nasceram: arrumou um emprego em Taipei, casou-se com um engenheiro e juntos se mudaram para Amsterdam, em meados da década de 90, para que ele terminasse seu doutorado. Mas, ao contrário de minha mãe, minha tia resolveu voltar, sem agregar nada do que havia aprendido no exterior à sua nova vida. Comprou uma casa no mesmo bairro em que cresceu e não sai da casa de minha avó por nada no mundo. Se houve alguma mudança, a temporada no ocidente serviu para que ela se agarrasse ainda mais às tradições e aos costumes.
Quando minha mãe e sua irmã caçula se encontram, ficam ainda mais evidentes as diferenças que tomaram corpo com o tempo. Numa visita recente de dona Alice a Taiwan, mesmo com minha avó hospitalizada, minha tia não deu uma trégua.
"Que educação é essa que você deu a seus filhos? Onde já se viu, deixar suas filhas soltas pelo mundo (a expressão em chinês é bem mais enfática), sem você saber o que elas estão fazendo? E seu filho? Como assim ele não foi para o Exército (em Taiwan, o serviço militar é obrigatório, tenha o rapaz pé chato, 15 graus de miopia ou um tio influente no governo)? Nenhum menino se torna homem sem passar pelo Exército."
As críticas de minha tia não cessam. Para ela, o fato de dona Alice ser a mais velha da família e ainda não ter netos é obviamente resultado da educação "solta" que ela nos deu. Eu e meu irmão ainda somos solteiros, minha irmã caçula é casada com um estrangeiro, que - horror dos horrores! - ainda por cima é careca. O material para a ladainha não acaba.
Dona Alice no começo procurava explicar. Mas depois de algumas tentativas frustradas, desistiu. Por muito tempo, ela mesma sentia um certo estranhamento em relação à educação que havia nos dado: viajávamos de mochila por aí, para lugares que ela nem sabia achar no mapa, gostávamos de comidas estranhas, trabalhávamos em profissões que fugiam do ideal chinês medicina-engenharia-direito, conversávamos numa língua que ela não dominava completamente. Quem eram essas pessoas que ela havia criado?
Mesmo assim, algo dentro de minha mãe diz que ela acertou ao nos educar com a medida certa de amor e autoridade, zelo e limites, flexibilidade e responsabilidade. Os netos, eventualmente, virão.


terça-feira, 6 de setembro de 2011

pão preto

Da série "Confusões de dona Alice"

Estávamos a caminho do supermercado quando passamos na frente do Essen, um novo restaurante na Vieira de Morais, especializado em cozinha suíça, que até bem pouco tempo ainda estava em obras.
- "Nossa, mãe, o restaurante já inaugurou?"
- "Já, inaugurou hoje no almoço. Eles inclusive distribuíram pan preto para fazer propaganda."
- "Pão preto? Mas por que, pão preto é a especialidade deles?'
- "Não, filha. Pan preto, aqueles papeizinhos que eles distribuem para fazer propaganda do restaurante, sabe? Eles deixaram alguns na loja para a gente entregar para os clientes."
- "Não é pan preto, mãe. É panfleto."
Se bem que, para conquistar dona Alice, pão preto seria uma estratégia bem mais eficaz do que panfletos.



domingo, 4 de setembro de 2011

aluna exemplar

Sempre que penso que minha mãe tinha apenas 23 anos quando se casou com meu pai, se mudou para o Brasil e começou a batalhar para ganhar a vida, fico espantada. Com a mesma idade eu fiz o caminho inverso, mas com matrícula feita na universidade em Pequim, dormitório reservado, gente para me buscar no aeroporto e grana para viajar - e ainda assim foi difícil.
Dona Alice sempre viajou, mas raramente sozinha. Suas viagens aconteciam geralmente com meu pai, com alguma amiga ou em grandes grupos. A primeira vez que teve que viajar completamente sozinha foi para a minha formatura do mestrado, em Berkeley, na Califórnia. Meu pai não poderia participar, ela viria sozinha. E quando liguei para ela para acertar os detalhes, o que havia em sua voz não era entusiasmo - era preocupação, o que para mim era incompreensível. Aos 23 anos, numa época em que tudo era mais longe, mais demorado e mais complicado, ela havia feito o mais difícil. Como uma simples viagem solo podia ser motivo para tanto medo?
Para tranquilizá-la, disse: "Mãe, o pior que pode acontecer se você se perder é conhecer um lugar novo. E isso nem pode ser considerado ruim, vai". Com esse novo lema na cabeça, ela fez a escala em Nova York direitinho e chegou em San Francisco inteira, sã e salva. Mesmo assim, o medo estava sempre presente quando tinha que viajar sozinha.
Essa preocupação foi completamente resolvida há um mês, quando meu irmão foi deixá-la no aeroporto de Guarulhos para que ela embarcasse para a China. Na conversa durante o caminho para o aeroporto percebeu que o medo de dona Alice era de não saber o que fazer primeiro, de não achar a informação para o próximo passo. Alguém sempre havia orientado para onde ir, o que fazer, que documentos mostrar, em qual portão embarcar. Era hora de ela aprender sozinha.
Chegaram no saguão e dona Alice ficou esperando que ele mostrasse o caminho.
- "E agora, mãe, para onde vamos?"
- "Não sei. Você não sabe?"
- "Mãe, o que a gente tem que fazer agora? Não é o check-in?
- "É."
- "Então, temos que procurar o guichê da companhia aérea. De que companhia você vai?"
- "De Swiss."
- "E onde é o guichê da Swiss?"
- "Não sei."
E a partir desse diálogo, minha mãe teve um curso intensivo sobre o bê-á-bá das viagens: aprendeu onde encontrar o guichê da companhia aérea, como fazer o check-in, onde embarcar, que cartão mostrar, como procurar o portão, como saber se o voo estava no horário.
- "Mãe, o segredo no aeroporto é olhar para cima. As placas e os monitores é que vão te mostrar para onde você tem que ir".
E foi olhando para cima que dona Alice desbravou sozinha o aeroporto de Guarulhos, prestando atenção em tudo, como se nunca tivesse estado lá. Foi olhando para cima que ela embarcou sem maiores incidentes de Hong Kong para a Suíça, e da Suíça para o Brasil. E ao descobrir a independência que vem com saber seu próprio caminho, sucumbiu também à mochila, que por muito tempo relutou em carregar porque não combinava com seu visual. Hoje, ela é adepta da mochila como uma adolescente, porque "é bem mais prático de carregar".
Dona Alice chegou essa semana de sua viagem. Enquanto desfazia suas malas, ia contando suas peripécias e as novidades de seu lado da família. E quando já estava quase no fim da contação de histórias, declarou, radiante, que adorava viajar e que agora estava pronta para desbravar o mundo sozinha.
- "É tão fácil, né? É só olhar para cima e seguir as placas. E se eu me perder, eu conheço um lugar novo!"
Dona Alice é o sonho de qualquer professor.


sexta-feira, 1 de julho de 2011

sábados brasileiros

Minha mãe já estava no Brasil há mais de um ano quando meu pai a levou para provar seu primeiro prato tipicamente brasileiro.
Seu Roberto, que já morava aqui há cinco anos quando casou minha mãe, tinha um paladar absolutamente eclético: experimentava de tudo sem medo e raramente torcia o nariz. Quanto mais exótico, melhor. E se viesse com doses generosas de alho e pimenta, ainda pedia para repetir.
Minha mãe era exatamente o contrário. Não se arriscava em pratos novos. Queijo, só se fosse tofu. A primeira vez que provou um cachorro-quente foi traumática: olhou para o pão com salsicha e preferiu passar fome. Macarronada? Só de pensar na acidez do molho de tomate dona Alice queria sair correndo.
E foram esses opostos gastronômicos que se aventuraram num restaurante brasileiro para comer feijoada, num sábado ensolarado em 1974, em Cidade Dutra. Os dois geralmente levavam marmitas, que comiam sentados sobre as sacolas de roupas que vendiam de porta em porta, à sombra de árvores. Mas naquele dia, seu Roberto prometeu que levaria dona Alice para experimentar um prato típico. Minha mãe mal podia esperar.
Depois do que pareceram horas, a feijoada chegou. Meu pai abriu um sorriso, como se reencontrasse um velho amigo. Minha mãe olhou para a combinação de branco, preto, verde e laranja e perguntou, perplexa: "Mas o que é isso?" Não houve explicação que a convencesse a provar.
Dona Alice hoje dá risada: "Eu morrendo de fome e da cozinha chega aquele prato enorme, com fumaça saindo, um caldo preto, pedaços de coisas que eu não sabia o que eram. Aquilo não tinha como ser bom".
Com o tempo, dona Alice foi se acostumando com a ideia de feijoada. Quando éramos pequenos, havia um bar em nosso quarteirão (que ficava exatamente na frente do poste que servia de pique quando brincávamos de pega-pega), onde tio Rufo e tia Maria serviam feijoadas caprichadas. Meu pai nos mandava lá sábado sim, sábado não, com duas panelas vazias, que vínhamos equilibrando no caminho de volta. Enquanto dona Alice dava provadinhas tímidas, seu Roberto e a criançada se esbaldavam.
Quase quarenta anos depois, hoje minha mãe é uma profunda apreciadora do prato. E como numa ironia do destino, há cinco anos temos ao lado da loja a companhia do Benjamim Botequim, que aos sábados começa a preparar cedinho a feijoada que faz a alegria dos moradores do Campo Belo. O festival de aromas invade o bazar sem dó: alho fritando, feijão no fogo, couve, mandioca, paio, costela, carne seca... Mal chega meio-dia e dona Alice já começa a pensar no almoço.
Nada como uma feijoada após a outra.


terça-feira, 21 de junho de 2011

final feliz

Não me lembro exatamente quando minha mãe começou a me contar suas histórias. Lembro-me apenas de que eu ainda era muito criança e de que todos aqueles episódios, contados num português que me soava um tanto estranho, me pareciam saídos de um livro. Sem nunca ter colocado os pés em Taiwan e muito nova para ter qualquer memória sobre os fatos relatados, foi a partir das descrições de dona Alice que construí em minha imaginação um filme mirabolante onde minha mãe era a protagonista: arrozais a perder de vista ("lá embaixo da montanhinha"), plantações de chá e a vida pacata de interior; depois, a rotina glamourosa na capital Taipei, com carros e luzes por todos os lados, onde ela era chefe de departamento de uma fábrica; e finalmente o casamento com meu pai, a vinda ao Brasil, o começo sofrido e todas as conquistas que se seguiram.
Também não me lembro com precisão quando as histórias começaram a perder seu encanto. Lembro-me apenas de já ser adolescente e de que, um dia, as histórias pareciam todas repetidas. Já havia memorizado todas as peripécias de dona Alice, já sabia como terminavam as aventuras. Ficava irritada quando notava que estava prestes a ouvir a mesma história. Fazia cara de tédio e dizia, em tom de reprovação: "Ai, mãe, de novo?" Dona Alice imediatamente mudava de assunto.
Mas o tempo faz maravilhas e hoje entendo a necessidade que minha mãe tinha - tem - de contar e recontar tantos episódios de sua vida. As pessoas que habitavam suas histórias haviam ficado para trás, emolduradas num outro tempo, em sua terra natal. No Brasil, só ela sabia o tamanho das dificuldades que havia superado, num português aprendido a duras penas. A sua havia sido, de certa forma, uma jornada solitária e sem testemunhas. Mas ao colocá-la em palavras, tudo aquilo se tornava real novamente. Então percebi: ela não contava suas histórias para mim - contava para si mesma.
O que nem eu nem ela sabíamos na época é que, ao dividir suas histórias comigo, dona Alice me apresentava a um mundo a que eu dificilmente teria acesso de outra forma. Quando fui a Taiwan pela primeira vez, com 15 anos, visitei alguns lugares que ela descrevia tão vividamente em suas histórias. E a Taiwan da minha imaginação, construída a partir dos olhos de minha mãe, era muito mais bonita, mais simpática, mais colorida. Um presente que ninguém mais poderia ter me dado.
Hoje, quando minha mãe começa a contar suas histórias, sento para ouvir. E aproveito para fazer perguntas, porque com as perguntas certas, dona Alice sempre lembra de algum detalhe novo, da estampa do vestido, do tio que faltou à festa, da piada que estava sendo contada na ocasião. E o fato de já saber como a história termina não me incomoda mais. Afinal, quem não gosta de ouvir histórias com finais felizes?

terça-feira, 24 de maio de 2011

ídolos

Dona Alice viu toda uma geração de crianças crescer no Campo Belo. Muitos deles hoje são pais de filhos adolescentes, mas continuam clientes do bazar, nem que seja para comprar uma pilha e dar um beijo em minha mãe.
L. é uma das crianças que passou a infância na loja. Gordinho desde pequeno, passou por um estirão na adolescência, mas engordou com a mesma velocidade com que chegou aos seus 1,80m. Bom de garfo e com pai obeso, ao entrar na fase adulta L. já passava com folga dos 100 quilos.
Depois de muito ponderar, o rapaz acabou por se submeter à cirurgia de redução de estômago. Emagreceu rapidamente e começou a malhar. Nunca ficou exatamente magro - seu novo físico ficava no limite entre o sarado e o "cheinho". Mas ficou mais vaidoso e passou a chamar a atenção das mulheres. Desfez o casamento com sua esposa, que conheceu ainda adolescente, e na sequência engatou um relacionamento com outra moça, com quem deve se casar ainda esse ano.
Dia desses, L. passou no bazar da dona Alice para fazer algumas compras. Estava de cabeça raspada, estilo que parece estar na moda. Minha mãe, que não acompanha as tendências fashion e sem entender por que alguém gostaria de ficar careca, perguntou:
- "Mas L., por que você está careca?"
- "Ah, dona Alice, para ficar mais bonito. Não estou parecido com o Vin Diesel?"
Dona Alice, que não conhecia o ídolo em questão, olhou para L. de alto a baixo e concluiu:
- "Não. Está parecido com o Buda."
A loja toda caiu na gargalhada, inclusive L. Cada um trabalha com as referências que tem.


domingo, 22 de maio de 2011

comida chinesa

Moradora do Campo Belo há 35 anos, dona Alice conhece todo mundo que mora ou passa por aqui, inclusive os carroceiros, que sempre encontram pilhas de papelão para reciclagem no bazar. Quando minha mãe resolve fazer a limpeza nos armários, às caixas de papelão somam-se sacolas e sacolas de roupas e sapatos.
Há alguns anos, Dona Alice conheceu Rafael, um menino que passava diariamente pela loja com os pais, carroceiros e invariavelmente negligentes e alcoolizados. Enquanto o casal se revezava para puxar a carroça, Rafael ficava responsável pelos irmãos menores, que acompanhavam as andanças da família pelas ruas de São Paulo em cima de caixas de papelão e outros objetos que encontravam pelo caminho.
Uma tarde, Rafael parou na loja e pediu um lanche. Com dó, minha mãe foi até a cozinha e encheu uma panela de comida. Chinesa. Que Rafael levou para casa, provou e concluiu que estava estragada.
No dia seguinte, o adolescente apareceu na loja xingando dona Alice, acusando-a de querer matar sua família. Minha mãe tentou explicar, mas não adiantou. Ele tinha certeza de que aquele gosto que não conhecia vinha de alguma comida que havia feito aniversário na geladeira e que minha mãe havia repassado a ele.
Daquele dia em diante, Rafael, que crescia a olhos vistos e emagrecia com a mesma evidência por causa do crack, parava todos os dias na frente da loja e ameaçava dona Alice. Gritava da rua, para quem quisesse ouvir, que a chinesa da loja havia tentado matá-lo. Minha mãe, depois de algumas tentativas de explicar o ocorrido, passou a ignorar a gritaria. Até que ele se cansava e ia embora. Depois de algum tempo, não vimos mais Rafael. Soubemos depois por vizinhos que ele havia sido preso por uma série de roubos no Campo Belo.
Mesmo depois desse episódio, dona Alice continuou ajudando os carroceiros. Mas agora, só com papelão.

terça-feira, 26 de abril de 2011

ODD

Da série "Confusões de dona Alice"

Quando eu era pequena, o detergente que usávamos em casa era o ODD, da Bombril. Ele vinha num frasco transparente, como esses de hoje, mas o líquido azul me deixava intrigada. Verde tinha cheiro de limão, amarelo de laranja... mas e azul, tinha cheiro de quê? No frasco dizia neutro, que para mim, naquela idade, era o mesmo que dizer nada.
Pois bem. ODD para nós era sinônimo de detergente, assim como Cândida até hoje é sinônimo de água sanitária. Recentemente fui descobrir que, para minha mãe, detergente e ODD eram muito mais que sinônimos.
Dona Alice estava lavando louça e, com a pia ainda cheia, notou que o detergente havia acabado. Enxaguando uma tigela, me pediu:
"Filha, vai lá no armário ver se tem mais o dedegente."
"Mais o que, mãe?"
"ODDgente", repetiu, me mostrando o frasco de detergente vazio. "Acabou ODDgente."
Para dona Alice, ODD e detergente não são sinônimos: são a mesma palavra. Anos depois de ter saído de linha, o ODD, quem diria, ainda conta com uma cliente fiel.



terça-feira, 12 de abril de 2011

armada e perigosa

O Campo Belo vem passando por uma transformação estranha esse último ano. Num período curtíssimo, uma pequena cracolândia se formou ao longo do córrego que deu o nome à antiga avenida Águas Espraiadas, atual Roberto Marinho. Passando pela região é fácil identificar os pequenos conglomerados, roupas nos varais improvisados, gente fumando crack. Não é raro ver motoristas parados no trânsito se assustarem com uma pessoa que, de repente, sai de dentro do córrego.
O resultado são mendigos dormindo em calçadas e garagens, pedintes nas entradas de supermercados e padarias, usuários de drogas se aventurando perigosamente por avenidas cheias de carros, num torpor inconfundível.
Vários moradores dessa nova comunidade que se estabeleceu no Campo Belo passam na frente do bazar diariamente. A maioria são homens feitos, que andam pelo bairro desocupados, pedindo comida, água, sacolas plásticas e trocados, num tom que fica entre o pedido e a ameaça.
Dona Alice morre de medo dessas situações, não apenas por ela, mas por todos na loja. Com ela e as balconistas são três mulheres tomando conta do bazar. A clientela é essencialmente formada por velhinhas, jovens mães e crianças pequenas. Até o cachorro é fêmea. Dona Alice tem experiência de sobra para justificar o excesso de zelo - nunca se sabe do que esses sujeitos são capazes.
Outro dia, um grupo de rapazes visivelmente sob efeito de drogas parou na frente da loja pedindo água. Minha mãe, já saindo de detrás do balcão, disse que não tinha. Os garotos insistiram. Dona Alice não se mexeu. Contrariados, passaram a xingá-la e a ameaçá-la com palavras impublicáveis.
Sozinha na loja, dona Alice não teve dúvidas: pegou a raquete amarela de matar pernilongos, daquelas encontradas por R$ 15 em qualquer cruzamento de São Paulo, e correu até a entrada.
- "Olha, é melhor vocês irem embora porque eu estou armada", disse, mostrando a raquete em punho. "E essa raquete TEM LUZ!"
Os marmanjos se entreolharam e, sem saber como reagir diante da chinesa que pretendia defender sua loja com uma raquete, saíram xingando. Depois que viraram a esquina, dona Alice se acomodou novamente no seu banquinho e voltou a ler seu jornal - mas deixou sua arma pertinho, só para prevenir.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

bênção

Meu pai foi o primeiro e único namorado de minha mãe. Ela o conheceu quando tinha 18 anos e, depois de cinco anos separados, enquanto meu pai tentava a vida do outro lado do mundo, deu um ultimato ao rapaz: ou ele voltava para Taiwan, eles se casavam e iam juntos para o Brasil ou eles se separavam e cada um ia para seu lado.
Meu pai, que nunca foi bobo, largou tudo e voltou para Taiwan para casar com minha mãe. Vieram juntos para o Brasil em 1973 e fizeram daqui sua casa.
Depois de 31 anos casados e uma vida inteira juntos, meu pai faleceu em novembro de 2004. De repente, dona Alice se viu sozinha, num país que não era o seu, sem família por perto. Ela, que nunca tinha tido medo de nada, de repente se viu com medo de tudo: do escuro, do silêncio, do presente, do futuro e, principalmente, da solidão.
Dona Alice tinha apenas 54 anos quando ficou viúva. Jovem e bonita, ela tinha tudo para voltar ao circuito. Nós mesmos nos perguntávamos se, passados alguns anos, minha mãe não deveria arrumar um namorado - não alguém que substituísse meu pai, mas alguém para dividir a vida com ela.
Minha mãe nem cogitava o assunto. Na cultura chinesa, quando a mulher se casa, ela passa a pertencer à família do marido. Não é só uma questão de sobrenome, mas de prioridades e funções. Dona Alice era casada com o filho mais velho dos meus avós, com uma função muito clara na hierarquia familiar. Suas responsabilidades como nora e cunhada mais velha continuariam, mesmo que meu pai não estivesse mais aqui. Era o que se esperava dela, era o que ela entendia ser seu papel. Para dona Alice, se envolver com outra pessoa seria uma traição. Quase como pedir para trocar de pai e mãe.
Um dia, não muito depois do falecimento de meu pai, minha avó chamou minha mãe num canto. Minha avó, que havia segurado bravamente as lágrimas ao ver meu pai debilitado na cama do hospital. Minha avó, que só foi comunicada da morte de seu filho uma semana depois do enterro, porque temiam que ela não resistisse à notícia. Minha avó, que tinha verdadeira adoração pelo seu primogênito. Essa avó sentou com minha mãe e disse baixinho, com sua sabedoria anciã:
- "Você ainda é jovem, vai viver muito tempo. A vida sozinha é muito triste. É importante ter alguém para dividir o futuro, para fazer companhia. Se você quiser casar de novo, pode se casar. Não importa o que digam. Você pode casar."
Dona Alice apertou as mãos enrugadas de minha avó entre as suas e abriu um sorriso de gratidão. Não porque tivesse considerado a possibilidade ou porque quisesse se casar de novo, mas pela generosidade de minha avó. Naquela tarde, só elas duas em casa, minha avó deixou claro que a felicidade de minha mãe era mais importante que os protocolos. E saber disso era um alívio.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

realocação de recursos

Dona Alice adora crianças. Mais velha de sete irmãos, ela cresceu cercada pela criançada. Quando conheceu meu pai, ganhou de brinde os nove irmãos dele, dos quais oito eram mais novos que ela. Com o tempo, os sobrinhos foram chegando. São 25 ao todo. Minha mãe carregou todos no colo, brincou com todos eles, enchia de presentes e sabe o nome de cada um sem hesitar, apesar de hoje serem todos marmanjos.
No bazar, dona Alice é hit absoluto com a criançada. Ganha beijos, abraços e até bolos de presente dos pequenos. E quando algum cliente anuncia o nascimento de um filho ou neto, minha mãe faz aquela festa, porque para ela não há maior motivo de comemoração do que a chegada de uma criança. Depois, sai discretamente, escolhe algum brinquedo da vitrine, embrulha escondido e coloca na sacola com as outras compras. Na hora que o cliente se despede, dona Alice conta no ouvido: "Deixei uma lembrancinha para seu filho/neto na sacola. Parabéns!" Difícil encontrar algum bebê no Campo Belo que não tenha um presente de dona Alice no baú de brinquedos.
Com essa adoração por crianças, é fácil entender por que minha mãe não se conforma quando alguém diz que não quer ter filhos. Para ela, são os filhos que dão razão à existência. É por eles que se trabalha, é por eles que se aguentam os percalços da vida, é por eles que se acorda todos os dias.
Um dia, uma amiga minha veio ao bazar para uma visita. Casada, 40 e poucos anos, nunca quis ter filhos. Adora os sobrinhos e os enteados, mas nunca quis ter os seus. Seu principal argumento era a conta bancária.
- "Mas dona Alice, é tão caro ter filhos hoje em dia. A criança mal nasce e já tem que ir para a creche. Depois vêm escola, inglês, natação, babá, viagens, festinhas... São muitos gastos!"
Minha mãe, com a lucidez e a paciência que lhe são tão peculiares, explicou por que aquela não era uma desculpa razoável.
- "Olha, eu tive três filhos. Eu e meu marido trabalhávamos muito para sustentar os três. Todos eles estudaram em escola particular, fizeram aulas de piano, natação, tênis, inglês e kumon. Os três usaram aparelho nos dentes e fizeram intercâmbio no exterior."
Minha amiga acenou com a cabeça, como se já tivesse feito os cálculos mentalmente.
- "Mas quando as crianças cresceram, não ficamos mais ricos. As despesas eram bem menores, mas mesmo assim não sobrava muito no final do mês. Para onde foi aquele dinheiro?"
A essa altura, outras pessoas na loja já haviam parado para ouvir a explicação.
- "Deus realocou para outra família, que está criando filhos pequenos e precisa do dinheiro mais que a gente. Eu não preciso mais, meus filhos estão crescidos, então Deus dá para outra família."
E com isso, dona Alice concluiu seu caso.
Minha amiga pode até não querer filhos. Mas para convencer dona Alice, vai ter que arranjar outra desculpa.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

muito prazer, chapeuzinho

No começo de janeiro levei minha mãe a Buenos Aires. A cidade estava lotada, os dias estava lindos, a comida era boa e o câmbio estava 1 para 2. No city tour que fizemos pela cidade, dona Alice sentou na janela e ia conferindo, no meu mapa, todos os lugares que a guia mencionava.
- Aqui, a Plaza de Mayo. À nossa frente, o Obelisco.
Minha mãe observava atenta. Quando os faróis fechavam, ela aproveitava para tirar fotos de prédios, monumentos, igrejas e de placas com os nomes de ruas (Dona Alice gosta de dar a exata localização das coisas quando mostra as fotos a amigas).
- Lá ao longe, as torres da Catedral Ortodoxa Russa. Aqui, do seu lado direito, o estádio do Boca Juniors.
O passeio que durava uma manhã terminava num shopping center no bairro chique de Palermo. No caminho até lá, passamos pelo parque Três de Febrero, no meio do qual se erguia uma estátua em mármore da Chapeuzinho Vermelho, completa com a Vovozinha e o Lobo.
- À sua esquerda, a Chapeuzinho Vermelho. Vejam o lobo escondido atrás dela - indicou a guia.
Minha mãe procurou, procurou e não achou o tal chapéu vermelho de que a guia falava. E lobo? Mas tem um lobo aqui no parque?
E eu, sem entender a confusão de minha mãe e achando que seus óculos estavam fracos, apontava para a estátua:
- Mãe, olha lá, a Chapeuzinho Vermelho. Tá vendo? Ao lado dela está a vovó. E atrás da Chapeuzinho está o Lobo escondido.
Dona Alice apertava os olhos e continuava sem achar.
Foi só então que me ocorreu:
- Mãe, você sabe quem é Chapeuzinho Vermelho?
- Não. Quem é?
Aí me dei conta: já passei horas incontáveis explicando para dona Alice a epidemia da Aids na África, a guerra por diamantes em Serra Leoa, os prós e contras do Bolsa Família, mas nunca tinha me dado ao trabalho de checar se ela conhecia as histórias da carochinha.
Contei a ela rapidamente a história de Chapeuzinho, enquanto o tour chegava ao último destino. Dona Alice ficou absolutamente horrorizada com o fato de o Lobo ter devorado a vovozinha.
Durante o almoço, na praça de alimentação lotada, perguntei:
- E a história dos Três Porquinhos, mãe, você conhece?
- Três porquinhos? Não, conheço só os três macaquinhos, que um é mudo, o outro é surdo e o outro é cego.
Dei risada e comecei:
- Então, era uma vez três porquinhos...
E foi assim que numa tarde ensolarada em Buenos Aires, e com algum atraso, dona Alice foi apresentada aos personagens de minha infância.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

o dia em que dona alice fez um marmanjo chorar

Dona Alice adora um agito. Desde que minha irmã começou a expor suas coleções de pantufas numa feira de calçados, minha mãe espera ansiosamente por janeiro, mesmo que ainda não completamente recuperada do cansaço acumulado em dezembro.
Para os expositores, a feira começa dias antes do início oficial do evento. É preciso acompanhar a montagem do estande, arrumar as vitrines, conferir se o ar-condicionado está funcionando. Em meio à feira semi-pronta, dona Alice parece uma criança na Disney. Percorre os corredores com os olhos brilhando e, horas depois, aparece animada com a lista dos estandes mais bonitos, que merecem uma visita.
Quando a feira começa, a diversão só faz aumentar. Minha mãe adora conversar com clientes, representantes e com quem mais passar desavisado pela porta. Todo mundo que entra é convidado a sentar.
- "Toma uma Coca-Cola, está tão calor... E olha, come um pedacinho de bolo."
- "Eu estava só vendo a vitrine, volto mais tar..."
- "Imagina, come um pedacinho de bolo, é uma delícia. É um bolo chinês, você vai até querer mais."
E as pessoas sempre querem. Se encantam com dona Alice, que tem um arsenal infinito de histórias para contar. E com o bolo, lógico, que é sucesso de bilheteria e já virou até tradição. Quando os representantes encontram clientes na feira, convidam: "Vamos lá comer um bolinho na mãe!". Dona Alice virou mãe dos marmanjos.
Essa feira não foi diferente. A agitação, o entra-e-sai de gente, aquela canseira boa no final da tarde. Tudo ia conforme o protocolo, até a tarde do segundo dia, quando a luz acabou em todo o Anhembi. Pega de surpresa, dona Alice foi obrigada a encurtar seu habitual passeio da tarde pela feira. Só não percebeu que, no meio do caminho, seus óculos caíram no chão. Quando chegou ao estande, já era tarde.
Ficou desolada. A armação cor de rosa da Marc Jacobs havia sido um presente nosso. Eram os óculos que ela usava em ocasiões especiais, para combinar com roupas mais bonitas. Inconformada, dona Alice ficou sentada por horas, cabisbaixa, sem enxergar muito bem, sem falar muito, tentando lembrar por onde havia passado.
Ninguém sabia mais o que fazer para melhorar seu ânimo. Valderi, um representante jovem e boa praça, gaúcho de Erechim, já havia passado nos Achados e Perdidos, mas nem sinal dos óculos. Mas incapaz de assistir àquela tristeza de braços cruzados, ele pegou Cema pelo braço e avisou, enquanto caminhava em direção à porta:
- "Dona Alice, a gente vai achar seus óculos!"
Valderi falou com todos os seguranças que encontrou pelo caminho. Conversa daqui, descreve de lá, repete a história para esse outro. De guarda em guarda, em pouco menos de uma hora ele havia chegado ao segurança que havia encontrado os óculos.
Sem conseguir enxergar, minha mãe nem percebeu quando Valderi, acompanhado do guarda, entrou no estande com os óculos no rosto. Foi só quando minha irmã lhe chamou a atenção que ela pulou da cadeira e o abraçou, depois abraçou o segurança, o sorriso de volta, a alegria incontida, regada a bolo e Coca-Cola.
Comovida, dona Alice passou aquela noite escrevendo uma carta para Valderi, que entregou no dia seguinte, junto com um presente.




Valderi leu a carta, enxugou as lágrimas e disse, com voz engasgada:
- "Dona Alice, a senhora acabou de fazer um homem de cem quilos chorar!"
Com ou sem óculos, dona Alice tem por princípio enxergar sempre o bem nas pessoas. Mas ser surpreendida é sempre bom.

sábado, 29 de janeiro de 2011

confissão

Eu sempre fui a mais difícil dos três filhos de dona Alice: a filha egoísta, temperamental, briguenta, que falava alto, saía batendo portas, cantando pneus e que conseguia passar meses em greve de silêncio. Eu sempre digo que minha mãe devia ser canonizada por não ter me assassinado durante minha adolescência.
Dona Alice nunca se abalou com meus acessos de raiva. Nunca brigou, nunca levantou a voz. Enquanto eu chorava, me descabelava e culpava Deus e todo mundo pelas injustiças que eu acreditava terem sido cometidas contra mim, ela ouvia, paciente.
Em casa, minha mãe era o equilíbrio na dinâmica familiar. Enquanto meu pai, de personalidade severa, metia medo nas crianças, dona Alice fazia o contraponto - do jeito dela, sem alarde, e sem colocar em xeque a autoridade de meu pai.
Ele achava que eu era nova demais para ter as chaves de casa. Minha mãe me deu o molho sem medo quando fiz 15 anos, num gesto de confiança que até hoje me comove. Quando capotei com o carro de seu Roberto por excesso de velocidade, a única coisa que me preocupava diante do estrago era a bronca que ia tomar dele. Dona Alice, que foi me buscar no local do acidente, me apertava, como se não acreditasse que eu estivesse viva, e dizia que não tinha problema, que "carro a gente compra outro". Quando, depois de uma briga com meu pai, saí de casa, minha mãe foi a primeira a mandar para meu novo apartamento o que ela acreditava ser essencial para sobrevivência: um filtro de água e uma panela cheia de comida. Não importava que eu já tivesse quase 30 anos. Não satisfeita, juntou toda a coragem que tinha para escrever uma carta, desaprovando a atitude de meu pai. Depois, surrupiou uma televisão de sua casa para levar para a minha. Meu pai faleceu achando que alguém tivesse entrado durante a noite e roubado o aparelho - uma pequena contravenção em nome do papel de mãe.
Lógico que nem tudo são rosas nesses 36 anos. Dona Alice tem manias que levam qualquer um à loucura. A demora em sair de casa, por exemplo. "Vamos, vamos, estamos atrasados!", ela apressa. Quando estão todos na porta, chave em punho, são mais dez minutos até que ela mesma fique pronta.
E a teimosia? Quando minha mãe coloca algo na cabeça, não há quem a demova da ideia. E não duvide, porque ela vai conseguir o que quer, não importam os obstáculos e não importa quão maluca seja a proposta. Frases mal-colocadas também já deram origem a brigas. No dia em que passei no vestibular para medicina, uma tarde chuvosa em janeiro de 1993, cheguei em casa feliz, com o rosto pintado e anunciando a notícia. Ouvi de dona Alice: "Estou mais feliz hoje do que no dia em que você nasceu!". A frase reduziu minha alegria pela metade e, por anos, me ficou engasgada.
Depois de tantos anos morando sozinha, já faz quase dois anos que voltei a morar com dona Alice. O saldo da convivência é bom, embora com alguns períodos de turbulência. Às vezes - e isso me preocupa um pouco - sinto que estou mais mansa, que meu temperamento não é o que já foi um dia. Não brigo tanto quanto antes. Escuto e onde antes implicava, deixo passar. Mesmo a frase que antes tanto me incomodava, hoje me enternece. Entendo que foi a única forma que minha mãe encontrou de expressar o tamanho da alegria e do orgulho que sentia naquele momento. Era como se dissesse: "Não dizem que o nascimento de um bebê é a maior alegria que se pode ter? Pois bem, minha alegria hoje é ainda maior!"
A própria dona Alice tem reparado na mudança da megera domada. Talvez seja a idade. Talvez seja a preguiça. Ou talvez seja, finalmente, a sabedoria de que, no final das contas, dona Alice sempre sabe melhor.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

tardes musicais

Eu, por boa parte da minha infância e adolescência, rejeitei tudo que se relacionasse à cultura chinesa. No início, provavelmente por ser uma cultura completamente alheia à criação que recebera de minha babá brasileira. Depois, como uma forma de me encaixar na escola alemã em que estudava. E mais tarde, como uma maneira de protesto por ser obrigada a frequentar aulas de chinês aos domingos.
O que eu não sabia é que, mesmo sem querer, essa cultura que eu tanto recusava seria pano de fundo para muitas de minhas memórias. Lembro-me perfeitamente das tardes de domingo, em que meus pais e alguns amigos, imigrantes como eles, se reuniam na loja (onde era mais fresco), depois dos longos almoços, e passavam horas contando histórias e cantando músicas chinesas que eu não entendia, acompanhando a fita que tocava no gravador.
Esses dias, ouvi numa festa de aniversário uma das músicas que escutávamos naquelas tardes musicais. Descobri que a cantora era Teresa Teng, umas das maiores cantoras de Taiwan, dona de hits românticos conhecidos em toda a Ásia. Eram músicas de que meu pai gostava muito e que minha mãe até hoje canta com voz afinadíssima. Aos primeiros acordes de "Tian Mi Mi", uma das preferidas de seu Roberto, percebi, com surpresa e nostalgia, que sou muito mais chinesa do que pensava (ou gostaria de admitir).