terça-feira, 24 de maio de 2011

ídolos

Dona Alice viu toda uma geração de crianças crescer no Campo Belo. Muitos deles hoje são pais de filhos adolescentes, mas continuam clientes do bazar, nem que seja para comprar uma pilha e dar um beijo em minha mãe.
L. é uma das crianças que passou a infância na loja. Gordinho desde pequeno, passou por um estirão na adolescência, mas engordou com a mesma velocidade com que chegou aos seus 1,80m. Bom de garfo e com pai obeso, ao entrar na fase adulta L. já passava com folga dos 100 quilos.
Depois de muito ponderar, o rapaz acabou por se submeter à cirurgia de redução de estômago. Emagreceu rapidamente e começou a malhar. Nunca ficou exatamente magro - seu novo físico ficava no limite entre o sarado e o "cheinho". Mas ficou mais vaidoso e passou a chamar a atenção das mulheres. Desfez o casamento com sua esposa, que conheceu ainda adolescente, e na sequência engatou um relacionamento com outra moça, com quem deve se casar ainda esse ano.
Dia desses, L. passou no bazar da dona Alice para fazer algumas compras. Estava de cabeça raspada, estilo que parece estar na moda. Minha mãe, que não acompanha as tendências fashion e sem entender por que alguém gostaria de ficar careca, perguntou:
- "Mas L., por que você está careca?"
- "Ah, dona Alice, para ficar mais bonito. Não estou parecido com o Vin Diesel?"
Dona Alice, que não conhecia o ídolo em questão, olhou para L. de alto a baixo e concluiu:
- "Não. Está parecido com o Buda."
A loja toda caiu na gargalhada, inclusive L. Cada um trabalha com as referências que tem.


domingo, 22 de maio de 2011

comida chinesa

Moradora do Campo Belo há 35 anos, dona Alice conhece todo mundo que mora ou passa por aqui, inclusive os carroceiros, que sempre encontram pilhas de papelão para reciclagem no bazar. Quando minha mãe resolve fazer a limpeza nos armários, às caixas de papelão somam-se sacolas e sacolas de roupas e sapatos.
Há alguns anos, Dona Alice conheceu Rafael, um menino que passava diariamente pela loja com os pais, carroceiros e invariavelmente negligentes e alcoolizados. Enquanto o casal se revezava para puxar a carroça, Rafael ficava responsável pelos irmãos menores, que acompanhavam as andanças da família pelas ruas de São Paulo em cima de caixas de papelão e outros objetos que encontravam pelo caminho.
Uma tarde, Rafael parou na loja e pediu um lanche. Com dó, minha mãe foi até a cozinha e encheu uma panela de comida. Chinesa. Que Rafael levou para casa, provou e concluiu que estava estragada.
No dia seguinte, o adolescente apareceu na loja xingando dona Alice, acusando-a de querer matar sua família. Minha mãe tentou explicar, mas não adiantou. Ele tinha certeza de que aquele gosto que não conhecia vinha de alguma comida que havia feito aniversário na geladeira e que minha mãe havia repassado a ele.
Daquele dia em diante, Rafael, que crescia a olhos vistos e emagrecia com a mesma evidência por causa do crack, parava todos os dias na frente da loja e ameaçava dona Alice. Gritava da rua, para quem quisesse ouvir, que a chinesa da loja havia tentado matá-lo. Minha mãe, depois de algumas tentativas de explicar o ocorrido, passou a ignorar a gritaria. Até que ele se cansava e ia embora. Depois de algum tempo, não vimos mais Rafael. Soubemos depois por vizinhos que ele havia sido preso por uma série de roubos no Campo Belo.
Mesmo depois desse episódio, dona Alice continuou ajudando os carroceiros. Mas agora, só com papelão.