terça-feira, 21 de setembro de 2010

e-mails de dona alice

Dona Alice aprendeu a mexer no computador na época em que me mudei para a África do Sul, em 2007. Como boa aluna, ela anotava em chinês, num caderninho, todas as instruções: como ligar a máquina, como configurar para o software em chinês, como navegar na Internet, como escrever e acessar e-mails, como imprimir.
Depois da Internet, seu maior fascínio com o mundo tecnológico era o e-mail. Embora no começo fosse uma dificuldade catar milho num teclado em português, com as letras e pontuações dispostas sem lógica nenhuma, dona Alice aprendeu rápido. No começo, as mensagens eram curtas:

oi li,
como esta sua vida de jornalista do onu ? do com saudade do balulho de ha; ha.ha. sem voce a casa ficou muito sem graca as vezes meu coracao bem apertado ,mas
todo bem ,a gente vai levando, oba! quase esqeci de conta ,sabe meu malanciais do deserdo,ja esta en dia.desto viagen do natal ,corento para alcancar ,finalmente comsequer.do tao feliz sabia?
temque ir para cozina,porqer juli e luki ja chgou vou fazer jantar.

hu beijo bem grande
mamae de ama muito muito

devi ter bastante errado e sem acendo .mas juli ainta vai me ensinar. bay .


(Nota: "Mananciais no Deserto" é um livro devocional que minha mãe copiou todos os dias por anos, para praticar o português. Teve que parar esse ano por um problema no dedo que a impossibilita de escrever por períodos longos.)

Com o tempo, minha mãe pegou o jeito e passou a relatar dias inteiros em suas mensagens, que passava horas escrevendo. Contava sobre pessoas, lugares e episódios e seus relatos me traziam, pelo menos por alguns minutos, de volta para casa:

li ;
como estar ?receber minha imeil?
trabalhar muito ?mas tabem tem que quidar do saude .vai ua academia fazer ginastica ,tem que comer arroz tabem .as vezes pencei quer que voce come ?
tem um didado ;;quado jovem .usar saude para trogar o dinhiro ..quado velho .nem
dinheiro pode compra saude ,;;;poes em quanto jovem ,ja tem que quitar do propeia
saude .

se tiver yempo ,domigo vai para igreja da wu ma ma ,conhcer nova amiga ;;novo ambiende ,isso e muito bom

hoje e feriado de sao paulo .fui jogar golf ,,sair demanha 5 hora ,jogui 36 buraco ,antei
para calamba ,cancei muito ,mas ,e bom ,pratica um poco ,chegui agora poco ,comi
arroz com sopa de ontem ,estou satis feido ,,ha ha ..

em casa tudo bem ,fu trabalha bastante ,eu ,cuitar da aretha ,loja banco ,e faxina de casa ,poquer ,a maria nao vem mais ,entao ... que vai fazer ,,mas tudo bem ,isso e menos ,gracas da deus ..tenho saude para trabalhar ,nao e ?

amo muito muito voce
um beijo

mamae


Os e-mails de minha mãe ajudavam a matar a saudade, do Brasil e, principalmente, dela. Um pouco como quando éramos pequenos e dona Alice viajava a Taiwan de férias. Esperávamos ansiosamente pelas cartas que ela nos mandava, em papel de seda e com letra caprichada. Aquelas finas folhas de papel faziam a saudade diminuir um pouco.
E como fiz com as cartas, fiz também com as mensagens: guardei, com carinho e cuidado. De todas (e são muitas!), minha preferida é essa, que recebi quando completei 34 anos.

filha,

parabes para voce ,gente que tempo passar ,paracer outro dia voce nasceu,gortinha fofinha ,bonidinha e ch/orona ,cada 3 hora tem que dar leite ,aquera epoca ,eu nao precisava relogio ,pelo choro da nene ja sei qual hora ja,e papai dava banho de voce ,ele premeiro lava pe dele bem limpinho ,depois corocou na banhoro para apoia sua cabecinha ,e grante mao dele segura a bumbum ,assim eu e papai brincava com nossa boneca ,ate fu nasceu ,e muito saudade no tempo boms ,ja um piscadinha passou 34 anos ,filha ,mamae de amo e muito muito .....
ja na hora de ir para loja ,depois eu escrever mais ,bom dia do aniverssario ,muito beijo ,muito feliscidade

mamae amo muito muito voce


Estar de volta é bom, muito bom. Mas sinto falta de receber mensagens da dona Alice.


segunda-feira, 13 de setembro de 2010

bazar do seu roberto

O nome que meu pai adotou quando chegou ao Brasil, em 1968, foi Roberto. Como Alice, ninguém sabe exatamente de onde surgiu Roberto, mas fato é que o nome pegou.
Seu Roberto era um homem bonachão, de riso aberto e que tinha uma extrema facilidade de fazer amigos. Conhecia todo mundo no Campo Belo e podia ser visto nas padarias e botecos do bairro, pagando cafés, cervejas e petiscos para conhecidos que encontrava na rua, fossem eles frentistas, taxistas, empresários ou advogados. Usava calça social com tênis (em dias de muita inspiração, usava meias verdes), carregava para onde fosse uma sacola da marca Tiger e quando chovia, colocava um boné.
Meu pai nunca teve muito tino para negócios. Quando trouxe minha mãe para o Brasil, em 1973, estava atolado em dívidas, contraídas num período de cinco anos. Não era bom com dinheiro. Foi dona Alice quem colocou ordem nas finanças do casal e seria ela quem depois sustentaria a família de cinco com o bazar Liang.
Embora dentro de casa seu Roberto fosse um homem severo, autoritário e de poucas palavras, fora de casa sua persona social o transformava num sujeito afável, ótimo contador de histórias e piadas. Vivia cercado de amigos, era sempre ao redor dele que a roda se formava nos jantares e festas. Era generoso também. Emprestou dinheiro a um sem-número de pessoas. Deu dinheiro a várias outras, que ainda hoje, seis anos depois de sua morte, lembram dele com carinho e gratidão.
No bazar, seu Roberto ajudava mais com entretenimento do que com vendas propriamente. Para ele, a loja era uma grande sala de estar. Agradava os clientes, batia papo em português carregado. Era mestre em elogiar as senhoras, que caíam de amores por ele. Gostava de gente. Atrás do balcão, era uma negação. Não sabia o que havia nas vitrines, seu vocabulário limitado impedia que ele explicasse como funcionavam os produtos. Seus descontos eram generosos, para alegria de clientes e desespero absoluto de minha mãe.
Com o tempo, meu pai assumiu outras funções na dinâmica familiar. E nesse sentido, ele foi um pioneiro: enquanto minha mãe tocava a loja, ele cumpria funções administrativas e domésticas. Era ele quem fazia compras para o bazar e ia ao banco para depositar o faturamento do dia. Era ele quem nos buscava na escola e nos choferava para atividades extra-curriculares. Era ele quem fazia feira e supermercado, quem sabia as marcas de Danone que gostávamos, a quantidade de óleo necessária para passarmos o mês, qual era a época de jabuticabas e mixiricas. Meu pai era o que hoje se chama de "pai moderno", com o detalhe de que na época o conceito de "pai moderno" não existia.
O dia estava lindo, de céu azul sem nuvens, quando seu Roberto faleceu em 2004. Ele escolheu o dia de Finados para ir embora. Partiu em grande estilo, do jeito que teria escolhido se soubesse que iria tão cedo, se tivesse tido tempo para preparar: funeral lotado, cemitério movimentado e cheio de flores, clima de festa. Meu pai era esperto mesmo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

"meu, tá bombando!"

Dona Alice aprendeu a falar português no dia-a-dia. Teve pouca educação formal na língua, com aulas em escolas públicas e igrejas quando sobrava um tempo na rotina corrida de loja, casa, marido e filhos.
Por isso, seu português é uma mistura do português culto, que aprendeu nos livros, e do coloquial, que pratica no balcão. Dona Alice entende e se faz entender muito bem, com um sotaque que eu considero imperceptível, mas que meus amigos insistem em dizer ser carregado.
Mas o mais divertido de se conversar com ela é observar o seu uso de gírias. Como estrangeira, minha mãe não sabe diferenciá-las da norma culta e nem tem conhecimento de que gírias caem em desuso. Para ela, todas as palavras estão numa mesma categoria e cabe a ela aprendê-las.
E ela aprende rápido. Dona Alice repetia todas as nossas gírias adolescentes quando estávamos na escola e, incrivelmente, usava sempre nas situações certas. Algumas passaram; outras, como "maior legal", ela incorporou ao vocabulário e não abandona por nada no mundo.
Nós crescemos, viramos adultos e as gírias de minha mãe evoluíram junto com as nossas. Hoje é comum flagrá-la ralhando com a Aretha, nossa golden retriever, porque ela "só causa". Ou comemorando o fato de o Benjamim Botequim, o bar vizinho da loja, estar "bombando". Ou reclamando de prazos não cumpridos e de fornecedores "sem noção".
E quando eu achava que ela já tinha dominado todas as gírias mais recentes e que, portanto, seu português beirava a perfeição, dona Alice solta, diante de algum comentário implicante de minha parte: "Meu, Li, você é muito mala!"
Aí eu percebo que sempre há espaço para melhora.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

parque de diversões

O bazar da dona Alice foi um lugar ótimo para se passar a infância. Foi detrás dos balcões que eu e meus irmãos entendemos, ainda muito cedo, a importância do trabalho, o conceito de responsabilidade e o valor do dinheiro.
Ainda pequenos, aprendemos a atender clientes, fazer pacotes e dar o troco (fazíamos as contas de cabeça. A calculadora só era permitida para conferência). Sabíamos a diferença entre as cargas para caneta esferográfica e rollerball, entre os joguinhos Donkey Kong 1 e 2 e entre os perfumes Azzaro e Paco Rabanne. Sabíamos fazer a conversão de valores de dólar para cruzeiro, cruzado e outras inúmeras moedas que vieram depois. Sabíamos que era importantíssimo pedir o RG quando recebíamos cheques de desconhecidos e dávamos bronca nas crianças que bagunçavam as vitrines.
Mas tudo isso acontecia quando a loja estava aberta.
Com as portas de ferro abaixadas, o bazar da dona Alice se transformava em nosso parque de diversões particular. Ficávamos encantados com os brinquedos à venda: Falcon, Suzy, Aquaplay, Playmobil, Pula Pirata, pião luminoso, cubo mágico, geleca, Comandos em Ação... eram tantos!
Mas o mais divertido eram as brincadeiras que aconteciam dentro do bazar. "Gato Mia" - uma espécie de esconde-esconde no escuro - dentro das vitrines era um hit entre as crianças que iam nos visitar. Perdi a conta de quantas vezes passamos da hora de dormir jogando "Stop" até tarde da noite, apoiados nos balcões, escrevendo no verso de folhas de papel de presente. Na loja pulávamos corda, jogávamos cartas (pif-paf e batata-maçã eram os preferidos), desenhávamos, jogávamos bola, fazíamos grandes competições. Estávamos sempre cercados de crianças, a casa cheia de risadas. Com o bazar, quem precisava de um playground?






Quando tinha 10 anos, fui matriculada no colégio Porto Seguro, conhecido por sua rigidez alemã e pelos alunos abastados. Um dia, fui convidada para uma festa de aniversário em Alphaville, na época em que Alphaville só tinha mansões enormes e gente muito rica. Para minha surpresa, a casa da minha coleguinha tinha piscina com cachoeira e elevador. Eu olhava para tudo como se tivesse chegado em outro país. Não entendia como aquilo podia existir na vida real.
Quando cheguei em casa à noite, lembro-me claramente, achei tudo sem graça, sem brilho, sem valor. Minha mãe já estava de pijama, a luz branca iluminando a cozinha diminuta. Perguntei a minha mãe por que nós não vivíamos como eles. Por que eles tinham uma casa tão grande com piscina e nós brincávamos dentro da loja?
Minha mãe suspirou e me explicou, com uma paciência que hoje eu sei apreciar, que nós tínhamos o que podíamos ter. "Papai e mamãe trabalham bastante, Li, para poder pagar uma boa escola para vocês. Talvez um dia a gente tenha uma casa com piscina. Talvez não. Mas agora é o que conseguimos ter."
A explicação me bastou. Entendi que, com o bazar, minha mãe nos dava mais que um playground: nos dava uma infância de aprendizado. Nunca mais toquei no assunto e, junto com meus irmãos, ainda passei muitos anos brincando no bazar da dona Alice.

numerologia

Da série "Confusões de Dona Alice":

Dona Alice e eu discutindo o melhor andar para se comprar um apartamento.
Dona Alice: "Acho que os melhores andares são o 5, 6, 7 e 8. (chineses procuram evitar o número 4 porque o fonema tem o mesmo som da palavra "morte"). Desses, o 6 e o 8 são os melhores, porque são números pares."
Eu: "Mas mãe, o 7 também é bom. 7 é o número perfeito. Deus criou o mundo em 7 dias, existem 7 notas musicais, 7 cores no arco-íris..."
Dona Alice, com cara de que tudo se encaixava: "É mesmo! E tem os 7 anões também!"