segunda-feira, 2 de agosto de 2010

cema conserta tudo

Iracema veio trabalhar como balconista no bazar da dona Alice com 15 anos. Magrinha, mirrada de tudo, mal pesava 45 quilos. Natural de Alagoas, morava na mesma rua que a gente, tinha um namorado chamado Cristóvão e uma cadelinha vira-lata chamada Samantha.
Não demorou para Iracema virar Cema. E Cema conquistou todo mundo da família com seu jeito bem-humorado e prestativo. Nunca teve medo de trabalho e adorava uma limpeza, seguida de arrumação. Atender clientes nunca foi seu forte. Para deixá-la feliz, bastava pedir para arrumar vitrines, estoques, gavetas. Lá ia ela, balde na mão, paninho para esfregar, mil produtos de limpeza. A loja pós-arrumação da Cema estava sempre tinindo.
Cema basicamente cresceu com a gente. Era quase uma irmã mais velha: ela tinha 15 anos, eu 10, meu irmão 8 e minha irmã 5.
Cema terminou os estudos e continuou no bazar da dona Alice. Quando achou que era hora, juntou os trapinhos com Cristóvão, seu primeiro namorado. Com ele teve uma filha, Gabriela, bebê de olhos grandes e riso fácil, hoje com 17 anos. O casamento não durou. Quando Gabi tinha pouco mais de dois anos, Cema conheceu um outro rapaz, seis anos mais novo que ela. Com Nilton, um baiano de poucas palavras e fã de Bob Marley, reconstruiu sua vida e teve outra filha, Isabela, que faz oito anos em setembro e é a miniatura do pai.
Como se não bastasse a mania de arrumação, Cema sabe um milhão de outras coisas: como pregar botões, costurar, tirar manchas de roupa, desatar nós, trocar bateria de relógio, colar vasos quebrados, tirar Super-Bonder dos dedos, aplicar tintura nos cabelos. Cema conserta tudo.
Com o passar dos anos, Cema virou membro da nossa família. Escuta os segredos de todo mundo, sem dar opinião, sem julgar. Só escuta. Virou confidente da dona Alice e sabe mais de minha mãe do que eu e meus irmãos juntos. Quando meu pai era vivo, era para Cema que minha mãe contava as brigas, as coisas boas, as conquistas. Depois que meu pai faleceu, é com Cema que minha mãe divide os sonhos premonitórios, os medos, as preocupações, as vontades - coisas que ela acha que os filhos não vão entender. Cema não fala nada, não dá bronca, não julga. Só escuta.
Outro dia, Cema ligou no celular da minha irmã. Já passava das nove da noite, horário inusitado para ela ligar.
"Juli, não fala pra sua mãe que sou eu, mas só estou ligando para avisar que ela está com uma dor no ombro que está me deixando preocupada. Falei para ela ir ao médico, mas ela não quer. Veja se vocês conseguem convencê-la."
Depois de tantos anos arrumando as gavetas do bazar, Cema aprendeu também a arrumar as gavetas emocionais da família. Tornou-se uma espécie de tradutora, ao me explicar, com pleno entendimento, coisas que eu acho maluquices da minha mãe; ou ao pedir mais paciência de meu irmão com atitudes aparentemente ilógicas da dona Alice. Com um vocabulário de cinco palavras em chinês, ela entende minha mãe e traduz para o nosso idioma. Tudo faz sentido quando ela explica.
Ano passado, Cema completou 40 anos e 25 anos no bazar da dona Alice, com um breve intervalo de dois anos. Continua com a mesma disposição de quando começou, só um pouco mais gordinha. E mais bonita, muito mais bonita. É o que todos dizem.

4 comentários:

  1. pra quem não sabe, iracema tem sobrenome chinês também. chama-se cema sãmó. ;o) Boa cema. 25 anos com a nossa família não é pra qualquer um. ;o) de tanto tempo, seu cabelo acabou ficando "naturalmente" liso né?

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  2. que legal a história da Cema, qd comecei a ler pensei q fosse uma crônica uma estória da cabeça de criança, mas me surpreendi quando vi que é caaso veridico. Lindo ver que hoje ainda existe amizades sinceras... muito lindo esse laço de amor e companheirismo

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