sábado, 31 de julho de 2010

dona alice no volante

Minha mãe nunca dirigiu muito quando nós éramos pequenos. O máximo que fazia era levar a gente para a escola, a velocidade de tartaruga, e quando necessário. Meu pai sempre foi o dono do carro: supermercado, feira, compras para a loja, leva-e-traz de crianças. E quando ela precisava ir a algum lugar, pedia que meu pai a levasse. Quando ele não podia, ia de táxi. Simples assim.
Meu pai sempre foi fã de carros e o tamanho deles foi aumentando a cada troca. O primeiro carro, logo que chegaram no Brasil, foi um Fusquinha branco (vendido). Depois o Opala bege (vendido), o Comodoro prata (roubado), o Diplomata azul-marinho (destruído por mim), o Ômega verde (vendido), a Hilux verde (roubada), até a atual Hilux pérola, que continua firme e forte.
Depois que meu pai faleceu, minha mãe teve que aprender a desbravar as ruas de São Paulo ao volante. Apesar de conhecer os bairros, ela tinha medo de dirigir até eles. Tem muitos carros na rua, dizia ela, e ela tem pouca agilidade. Os motoristas hoje em dia são imprevisíveis. Aos poucos, ela passou a depender da minha irmã, que, geralmente de boa vontade, levava dona Alice aonde ela quisesse.
Eu, desse lado, desaprovava a mordomia. Dizia, em alto e bom som (e não sem uma pitada de culpa), que quanto mais minha irmã fizesse isso, mais minha mãe ficaria dependente dela. Mas não adiantava. Minha irmã ficava com dó e acabava sucumbindo.
Até que um dia minha irmã viajou e ficamos só eu e dona Alice em casa. No primeiro dia que ela veio me pedir para levá-la a algum lugar, ouviu: "Mãe, você já foi lá mil vezes, sabe onde é. Você tem carta de motorista, o carro está com o tanque cheio e você sabe onde está a chave. Vai sozinha."
(culpa, culpa, culpa)
Ela foi. Fez o que tinha que fazer e voltou, inteira. E com um sorriso no rosto, orgulhosa, porque tinha conseguido ir sozinha, sem depender de ninguém. E naquele carro imenso, que mete medo até em marmanjo que nunca dirigiu um.
Hoje, ela enfrenta valente as avenidas congestionadas, descobre atalhos aqui e acolá, e até pega estrada sob neblina. Quando ela me pede para levá-la a algum lugar, eu levo, vez ou outra. Mas quando percebo que os pedidos estão ficando frequentes, digo "não". Dona Alice não hesita: pega a chave, o documento do carro (como motorista responsável que é) e vai embora. Volta sempre com cara de quem conquistou a cidade - o que não deixa de ser um pouco verdade.
Hoje ela saiu cedinho para fazer compras no centro e voltou em tempo recorde, esbaforida, carregada e feliz. No almoço, soltou: "Filha, ainda bem que você não faz todas as minhas vontades. Se você sempre me levasse para cima e para baixo, eu ia encostar em você e não teria coragem de dirigir por São Paulo."
Como num passe de mágica, minha culpa sumiu.

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