quinta-feira, 19 de agosto de 2010

portas abertas

Em 34 anos, as únicas vezes em que minha mãe deixou de abrir o bazar foram em circunstâncias de luto: em 01 de abril de 1992, quando meu avô faleceu; e em 02 de novembro de 2004, quando meu pai faleceu. As portas de ferro abaixadas num dia de trabalho eram tão desconcertantes que quase dispensavam a plaquinha "Fechado por motivo de luto".
Abrir a loja sempre foi um ritual para dona Alice. Era o que marcava o início do dia, depois de despachar as crianças para a escola: levantar as portas de ferro, estender o toldo para proteger a vitrine do sol, limpar os vidros, varrer o chão. Quando morávamos nos fundos da loja, abrir o bazar era como abrir a sala para receber visitas. Hoje, 34 anos depois, ela ainda sai animada de casa, sempre comemorando: "Que bom que eu tenho uma loja para abrir!"
Depois da morte do meu pai, eu defendi a ideia de que o melhor seria fechar a loja. Vender, passar para frente, transformar em outro negócio. Achava que minha mãe nunca superaria a perda do meu pai se ela continuasse atrás dos balcões do bazar Liang. Meus irmãos, mais novos mas infinitamente mais sensatos, vetaram minha proposta. "A loja fica aberta", decidiram. "Depois a gente pensa no que vai fazer."
Nos dias que seguiram aquele triste dia de Finados em 2004, minha mãe não se permitiu ficar em casa. Abatida, ela havia perdido peso, cor e vida. A tristeza era infinita, as lágrimas teimavam em brotar, o vazio parecia crescer, mas dona Alice acordava cedinho, vestia cores sóbrias (por muito tempo após a morte do meu pai ela se recusou a usar vermelho, sua cor preferida) e ia abrir sua loja.
E foi através das portas abertas do bazar que vieram solidariedade e alento. Vizinhos, amigos e clientes, gente do bairro e gente de longe, todos vinham dar colo, trazer um bolo, oferecer um abraço, dizer quanto gostavam do meu pai e quanto torciam para que ela se recuperasse logo. Era uma força-tarefa para trazer a dona Alice de volta.
Dona Alice voltou. E abrir a loja continuou sendo o ritual que dava início ao dia. O que ela não sabia é que as portas abertas eram vias de mão dupla.
Outro dia, uma cliente de longa data, sempre bonita e cheia de vida, passou na frente da loja. Não cumprimentou, como costumava fazer. Continuou andando, cabisbaixa. Quase bateu a cabeça no suporte do toldo, mas nem percebeu. Minha mãe achou estranho. Soube depois que ela tinha perdido a irmã mais nova, de quem era muito próxima, para uma doença fulminante.
Hoje a cliente passou de novo na frente da loja. O dia estava ensolarado, mas ela vinha abatida, vestida de preto, o rosto sem expressão. Minha mãe largou tudo e chamou o nome dela. Ela parou, como se tivesse sido interrompida em seus pensamentos, e dona Alice simplesmente lhe deu um abraço. Ela chorou, chorou, chorou e disse que hoje fazia dois meses que a irmã dela havia falecido. Estava andando pelo bairro para ver se a tristeza passava um pouco.
Minha mãe lhe deu apenas dois conselhos práticos: "Não use mais preto. Preto não é bom. E venha mais aqui no bazar. Aqui você vai se distrair."
Ela limpou as lágrimas, deu outro abraço em dona Alice, e foi embora.

Um comentário:

  1. que lindo, Lili! Me emocionei e me identifiquei muito... Uma linda demonstração de amor.
    um beijo

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