quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

fast forward

Ontem dona Alice e eu fomos à festa de aniversário de 80 anos (81, segundo o calendário chinês) de um tio-avô. A festa foi uma ocasião quase de gala, terno e gravata, tafetá e salto alto, e inúmeros parentes vindo do exterior para prestigiar. Três gerações lotavam o salão do restaurante chinês mais caro de São Paulo.
A festa aconteceu nos moldes chineses: muitas fotos, muitos discursos, brindes emocionados, muita comida e microfone aberto para karaokê. Mas com o usual rigor e formalidade asiáticos, ninguém contava com homenagens tão sinceras, nem com demonstrações de carinho tão genuínas quanto as presenciadas na noite de ontem.
A primeira delas foi um pequeno filme, montado a partir de fotos, antigas e recentes, da trajetória de meu tio-avô: a vida em Taiwan; a mudança para o Brasil com cinco filhos, a caçula ainda no colo; o começo da vida no novo país, primeiro com uma floricultura, depois com um bazar; os filhos crescidos, depois os netos; as viagens, as festas, os parentes, os amigos. Enquanto o filme passava no telão, notei que que dona Alice, assim como eu, estava com os olhos marejados. Ao olhar ao redor, vi que outras pessoas também enxugavam, disfarçadamente, os olhos úmidos. Aquela história era, de certa forma, a história de todos nós.
A segunda homenagem foi uma música chamada "Coração Grato" (Gan En De Xin), cantada a plenos pulmões, e em meio a muitas lágrimas, por filhos, netos e agregados, acompanhados baixinho pelos convidados, inclusive dona Alice. Ao final da música, os cinco filhos, emocionados, abraçaram o pai. O octagenário reagiu como qualquer pai chinês da velha guarda pouco habituado a arroubos afetivos: um sorriso sem graça, um abraço rápido e um tapinha nas costas.
Para dona Alice, a festa foi uma espécie de fast-forward de sua vida daqui 20 anos. Hoje com 60 anos, uma de suas maiores preocupações é a velhice. Viúva, tem medo de ficar sozinha num país que não é seu. Tem medo de ser abandonada num asilo pelos filhos. Seu plano, que relata num tom de brincadeira mas que tem um quê de verdade, é contratar Cema, a balconista que já é quase da família, para cuidar dela quando ficar velhinha.
Mas ontem à noite, ao assistir, emocionada, as cenas que se desenrolavam à nossa frente, dona Alice viu que o futuro e a velhice podem não ser tão assustadores. Meu tio-avô, como ela, também atravessou oceanos, fez a vida com um bazar, criou filhos e estava envelhecendo num país estrangeiro. E lá estava ele, aos 80 anos, saudável, cercado de amigos e família, dono de uma vida intensa e feliz. Talvez um sinal de que, pelo menos pelos próximos 20 anos, dona Alice não tem com que se preocupar.

domingo, 19 de dezembro de 2010

dezembro(s)

Dezembro é um mês memorável para toda uma geração de adolescentes do Campo Belo. Com o frenesi de Natal, a única balconista que minha mãe mantinha o ano todo não dava conta do movimento e era preciso contratar uma legião de ajudantes - adolescentes em férias, a maioria do bairro, que queriam complementar a mesada com um dinheirinho extra no final do ano.
O trabalho não era fácil: atendíamos clientes, colocávamos preços em mercadorias, arrumávamos as vitrines. Aprendia-se por observação, porque na correria não dava tempo de ensinar nada a ninguém. A circulação era difícil, porque tínhamos que desviar de caixas, pacotes, sacolas, etiquetas, rolos de papel de presente. Só parávamos para almoçar e tomar lanche. Quando a correria acalmava um pouco, descansávamos lá dentro, cada um com uma tesoura, sentados nos degraus, enrolando fitinhas para colocar nos presentes. As horas passavam voando. No final do dia, a garotada mal se aguentava em pé, o cansaço estampado nas camisetas sujas e nos pés inchados.
Mas apesar da rotina puxada, eram 24 dias de muita diversão também. Passávamos horas testando brinquedos, experimentando perfumes, desvendando o funcionamento de relógios e jogos eletrônicos, dando risada de cada descoberta e cada erro. Todos os dias alguém aparecia com uma piada nova, com alguma história engraçada, com algum episódio inusitado com clientes. Meu pai, sempre bom anfitrião e adepto da filosofia de que "Saco vazio não para em pé", tratava a garotada a pão-de-ló. Até hoje ele é lembrado por isso. Quanto mais perto do Natal, melhores ficavam as refeições. Na véspera do Natal, a tradição do almoço era um pernil gigante, preparado pela dona Celme, que dava para alimentar uma tropa de 50 marmanjos.
Dona Alice tem ótimas lembranças desses 34 dezembros que passou atrás dos balcões. A loja sempre cheia e abafada, a energia da criançada que viu crescer e o clima de festa tornavam o cansaço de se administrar o bazar no Natal - trabalho que às vezes ia madrugada adentro - muito mais divertido. Na hora que os ajudantes iam embora, minha mãe sempre recomendava: "Descanse bastante, porque ainda temos xx dias até o Natal!"
Na tarde do dia 24, o bazar Liang parecia palco de uma batalha vencida. As vitrines vazias, todo mundo exausto. Era hora de trocar presentes do amigo secreto - sempre de chocolate - e dar a dona Alice as flores compradas às escondidas, com um cartãozinho assinado por todos os ajudantes daquele ano. Minha mãe tem todos os cartões guardados até hoje.
Passado tanto tempo desde os primeiros Natais, os ajudantes ainda fazem parte da vida do Bazar Liang. A maioria casou, alguns já tiveram filhos, outros mudaram de país, mas quando dá, passam pelo bazar para dar um beijo em dona Alice e relembrar histórias de dezembros passados: William, Ana Cristina e Verônica; Andrea e Margareth; Li Tumtum e Li Chuan; Cristiane e Daniela; Adriana e Marcelo; Aline; Tica; Karina; e, lógico, nossa querida e sempre presente Cema.
A todos vocês, nosso muito obrigada. Vocês ainda fazem os Natais no bazar Liang muito mais felizes.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

constante evolução

Na correria do mês de dezembro, dona Alice mal tem tempo para almoçar. O bazar vive lotado, clientes chegam com listas quilométricas e minha mãe, na adrenalina do balcão, esquece da fome. Quando dá uma brecha, ela corre para casa para comer alguma coisa. As refeições são sempre feitas às pressas, interrompidas por telefonemas, fornecedores e clientes que só aceitam ser atendidos por ela.
Eram quase duas da tarde quando ela conseguiu parar para almoçar hoje. Depois de devorar a comida em tempo recorde, o telefone começou a tocar insistentemente. Dona Alice estava escovando os dentes e não conseguiu atender. Começou a tocar de novo e enquanto descia as escadas correndo, minha mãe soltou, como se a pessoa da outro lado da linha pudesse ouvi-la: "Calma, cara (sic)! Não me faz pressão porque senão eu fico desequilibrada!"
É verdade o que dizem por aí: o português - pelo menos o de dona Alice - é uma língua em constante evolução.