sábado, 31 de julho de 2010

palavras difíceis

Hoje minha mãe fala português perfeitamente, mas quando éramos pequenos, ela não dominava muito a língua. Foi aprendendo na rua, no contato com clientes, no acerto-e-erro. Era o português do dia-a-dia: básico, suficiente, sem grandes sofisticações, e que lhe rendeu episódios engraçados, como o do ladrão que entrou na loja anunciando um "assalto" e ao invés de dinheiro, quase saiu levando um extrato bancário, porque minha mãe entendeu que ele queria ver o "saldo".
Mas dona Alice estava convencida de que, se ia fazer a vida no Brasil, tinha que aprender a ler português. Aprendeu na marra, com o auxílio de livros bilíngues, um dicionário usado e com páginas faltando, amigos pacientes que se dispunham a ensiná-la, aulas noturnas em escolas públicas e igrejas depois de um dia inteiro fazendo malabarismo com casa, família e trabalho. Anos de esforço compensaram: O Velho e o Mar, de Hemingway, e Éramos Seis, de Maria José Dupré, lidos em português, estão na lista de seus livros preferidos.
Para mim, a língua vinha sem esforço. Embora com pais chineses, minha vida acontecia em português: escola, babá, Sítio do Pica-Pau Amarelo. Ainda no primário, meu domínio do idioma já era melhor que de meus pais. A partir da terceira série, quem preenchia os formulários escolares - meus e dos meus irmãos - era eu. Comunicados do banco e da Telesp que meus pais não entendiam eram invariavelmente passados para mim, que tentava, sem sucesso, entender aquela linguagem que nem parecia português.
Minha mãe me perguntava as palavras que não conhecia. E eu, com meu vocabulário de oito anos, tentava explicar da melhor forma possível. Algumas vezes eu também não conhecia a palavra. E quando conhecia, nem sempre conseguia explicar, para frustração das duas. O jeito era apelar para o dicionário e torcer para que a palavra não estivesse numas das páginas que estavam faltando.
Um dia, num domingo à noite, o telefone tocou. Minha mãe atendeu e logo ficou claro que ela não estava entendendo o que a pessoa do outro lado estava dizendo. "O quê? Se eu quero o quê?" Sem entender a resposta, ela acabou desligando.
Eu tinha oito ou nove anos e já estava pronta para dormir.
"Filha, o que é 'transar'?"
"Não sei, mãe. A gente ainda não aprendeu esse verbo na escola. Mas eu acho que quer dizer sair, passear. Por quê?" (De onde eu tirei essa resposta, só Deus sabe.)
"Porque esse cara no telefone perguntou se 'eu queria transar'."
"Ih, mãe, acho que ele estava te convidando pra sair!", eu disse, dando risada.
"Que gente louca. O que é isso, liga para a casa de qualquer um para convidar para sair? Cada coisa...", disse ela, enquanto apagava a luz do meu quarto.
Eu só fui descobrir o real significado da palavra anos depois, já adolescente, mas nunca me dei ao trabalho de explicar para dona Alice. Mas acho que nem preciso: hoje com um português bem mais fluente, ela já deve saber o que é.

dona alice no volante

Minha mãe nunca dirigiu muito quando nós éramos pequenos. O máximo que fazia era levar a gente para a escola, a velocidade de tartaruga, e quando necessário. Meu pai sempre foi o dono do carro: supermercado, feira, compras para a loja, leva-e-traz de crianças. E quando ela precisava ir a algum lugar, pedia que meu pai a levasse. Quando ele não podia, ia de táxi. Simples assim.
Meu pai sempre foi fã de carros e o tamanho deles foi aumentando a cada troca. O primeiro carro, logo que chegaram no Brasil, foi um Fusquinha branco (vendido). Depois o Opala bege (vendido), o Comodoro prata (roubado), o Diplomata azul-marinho (destruído por mim), o Ômega verde (vendido), a Hilux verde (roubada), até a atual Hilux pérola, que continua firme e forte.
Depois que meu pai faleceu, minha mãe teve que aprender a desbravar as ruas de São Paulo ao volante. Apesar de conhecer os bairros, ela tinha medo de dirigir até eles. Tem muitos carros na rua, dizia ela, e ela tem pouca agilidade. Os motoristas hoje em dia são imprevisíveis. Aos poucos, ela passou a depender da minha irmã, que, geralmente de boa vontade, levava dona Alice aonde ela quisesse.
Eu, desse lado, desaprovava a mordomia. Dizia, em alto e bom som (e não sem uma pitada de culpa), que quanto mais minha irmã fizesse isso, mais minha mãe ficaria dependente dela. Mas não adiantava. Minha irmã ficava com dó e acabava sucumbindo.
Até que um dia minha irmã viajou e ficamos só eu e dona Alice em casa. No primeiro dia que ela veio me pedir para levá-la a algum lugar, ouviu: "Mãe, você já foi lá mil vezes, sabe onde é. Você tem carta de motorista, o carro está com o tanque cheio e você sabe onde está a chave. Vai sozinha."
(culpa, culpa, culpa)
Ela foi. Fez o que tinha que fazer e voltou, inteira. E com um sorriso no rosto, orgulhosa, porque tinha conseguido ir sozinha, sem depender de ninguém. E naquele carro imenso, que mete medo até em marmanjo que nunca dirigiu um.
Hoje, ela enfrenta valente as avenidas congestionadas, descobre atalhos aqui e acolá, e até pega estrada sob neblina. Quando ela me pede para levá-la a algum lugar, eu levo, vez ou outra. Mas quando percebo que os pedidos estão ficando frequentes, digo "não". Dona Alice não hesita: pega a chave, o documento do carro (como motorista responsável que é) e vai embora. Volta sempre com cara de quem conquistou a cidade - o que não deixa de ser um pouco verdade.
Hoje ela saiu cedinho para fazer compras no centro e voltou em tempo recorde, esbaforida, carregada e feliz. No almoço, soltou: "Filha, ainda bem que você não faz todas as minhas vontades. Se você sempre me levasse para cima e para baixo, eu ia encostar em você e não teria coragem de dirigir por São Paulo."
Como num passe de mágica, minha culpa sumiu.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

reforma

Todo dia eu agradeço a Deus por estar cercada de gente sensata. Meio impulsiva, com um pé na truculência, se deixarem, eu passo por cima de quem estiver na frente como um trem desgovernado.
O que é hoje o Bazar da dona Alice foi, por muito tempo, o lar da Família Liang. Nós morávamos na parte de trás da loja: no andar de baixo tinha uma sala, dois banheiros, uma cozinha e um quintal; no andar de cima, dois quartos e uma varanda.
Pode parecer uma casa grande, mas não era. Para cinco pessoas, era uma casa até bem pequena. Eu e meus irmãos dormimos no mesmo quarto até a adolescência. Mas na época, uma casa pequena ou grande não importava. Era a nossa casa e foi lá que minha mãe deu grandes jantares e recebeu amigos queridos. Foi lá que ela nos viu crescer, amadurecer e virar adultos. Era lá que ela ainda morava quando meu pai faleceu, em 2004.
Naquele mesmo ano, ela se mudou.
Em 2008, minha irmã resolveu fazer uma reforma na loja, que nunca tinha passado por uma desde sua inauguração em 1976. Uma reforma daquelas bravas, de colocar tudo abaixo para levantar de novo.



E já que já estávamos com a mão na massa, por que não levar o quebra-quebra lá para dentro, renovar tudo, aproveitar melhor o espaço?
A proposta não foi bem recebida. Minha mãe não queria de jeito nenhum. Não conseguia explicar por que, mas não queria. Bateu o pé. E eu, sempre truculenta, já parti pra briga. Mas por que não? Quem não quer um lugar mais bonito, mais novo, mais legal?
Diante do impasse, a resposta veio do meu então-candidato-a-cunhado: "Reformem a loja, deixem lá dentro como está."
"Mas...", disse eu.
"Mas...", disse minha irmã.
"Mas nada. Reformem a loja e deixem lá dentro como está", ele insistiu.
O que minha mãe quis dizer, e que meu cunhado soube entender sem precisar de palavras, foi isso: ao reformar a casa, nós acabaríamos com as referências de uma vida toda que ela havia vivido no Brasil. Os 30 anos com meu pai, nossa infância e adolescência, tudo que tinha valor sentimental para ela deixaria de estar num lugar que ela poderia visitar para ficar apenas na memória.
A loja foi reformada em tempo recorde e nem parecia o bazar da dona Alice, tão caprichada foi a reforma. Muitos clientes que não acompanharam a mudança achavam que tinham errado de loja. Só se convenciam quando viam dona Alice vir dar as boas-vindas, sem caber em si de felicidade.



Lá dentro, tudo continuava no mesmo lugar: os armários, os cadernos escolares, as roupas do meu pai. O piso vermelho no quintal, o chão de taco nos quartos. A velha mesa de jantar, as estantes cheias de revistas empoeiradas. Mas minha mãe não podia estar mais feliz.

no campo belo

Dona Alice tem um carinho especial pelo Campo Belo. Foi aqui que construiu sua vida, depois da ralação inicial de imigrante recém-chegada ao Brasil. Eram os anos 70, ela não falava português, mas nem por isso se intimidava. Começou vendendo roupas de porta em porta, carregando o bebê na barriga que só fazia crescer. Ia tomando os diferentes ônibus para ver onde eles paravam. Desbravar novos bairros era uma grande aventura.
Foi no Campo Belo que ela acabou se estabelecendo. Abriu sua loja e foi atrás dos balcões dessa loja, que já tem 34 anos, que viu o Campo Belo crescer. Com o tempo, os primeiros clientes, já mais velhos quando minha mãe começou o negócio, foram envelhecendo e morrendo. Seus filhos continuaram comprando no bazar da dona Alice. Agora os netos.
"Dona Alice, meu pai perguntou se eu posso pegar esse carrinho e depois ele passa para pagar", dizem os meninos, que hoje parecem crescer mais rápido que antigamente.
"Lógico!", diz sempre minha mãe. "Pode levar."
Confiança de anos na vizinhança. Eles sempre passam para pagar.
O Campo Belo hoje cresce também como bairro. As casas de vovó estão dando lugar a prédios de alto padrão, trazendo novas famílias para a região. Todo dia abre uma loja nova, um salão de beleza novo, um pet shop novo. O número de carros, cães e carrinhos de bebês nas ruas só aumenta.
E dona Alice assiste orgulhosa, como se fosse parte de tudo.
Nesses últimos tempos, passear pelo bairro é um de seus passatempos favoritos. Quando está sol, ela chama a Aretha, nossa golden retriever, e anuncia: "Vou ver se está tudo bem com o Campo Belo". Como se o Campo Belo fosse um parente querido.
Dona Alice sai pelas ruas, conversa com as pessoas, se atualiza dos netinhos e divórcios da vizinhança, confere lojas que abriram e fecharam, vê quais casas foram postas à venda, ora lamenta, ora comemora os prédios que não páram de pipocar.
E volta cheia de novidades para contar.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

ouvir chinês

Tem coisas de que a gente nem se dá conta na mãe da gente.
Hoje, por exemplo, a Internet da loja da minha mãe deu pau. Não funcionava por nada no mundo. Tiramos todos os cabos, reconectamos tudo... e nada. Minha mãe estava desolada, porque falar com minha irmã, que mora no exterior, pelo Skype é um dos pontos altos do dia.
Chamamos o técnico, que prometeu aparecer logo depois do almoço, "lá pelas 13h30". Chegou na loja quase às 17h. Mexeu daqui, fuçou de lá, descobriu que o problema era no modem. A TVA vem amanhã consertar. Problema resolvido. Um sorriso se esboçou no rosto de dona Alice. Esperançosa de que Adauto podia dar um jeito em todos os computadores da casa, ela arriscou: "Você não pode instalar a PPS TV no meu laptop?"
PPS TV é um programa que transmite novelas chinesas (ou japonesas, ou coreanas) no computador. Ela já queria o programa fazia tempo, mas tinha ficado com medo de pedir para um dos três filhos, sempre tão ocupados, instalar no laptop dela, que, de tão velhinho, funciona quase a manivela. Culpa.
"Sinto falta de ouvir chinês. Depois que seu pai morreu, eu nunca mais falei chinês em casa. Na loja eu só falo português. Falo com vocês em português. Assisto a novela em português. Sinto saudade de ouvir chinês, sabe?"
O desabafo me pegou de surpresa. É tão natural vê-la falando português que nunca havia me ocorrido que ouvir chinês era algo que lhe fizesse falta. Com a morte do meu pai ela perdeu também o convívio com a língua materna, familiar, a língua em que ela se emociona. E as duas ausências doem no mesmo lugar.