terça-feira, 21 de junho de 2011

final feliz

Não me lembro exatamente quando minha mãe começou a me contar suas histórias. Lembro-me apenas de que eu ainda era muito criança e de que todos aqueles episódios, contados num português que me soava um tanto estranho, me pareciam saídos de um livro. Sem nunca ter colocado os pés em Taiwan e muito nova para ter qualquer memória sobre os fatos relatados, foi a partir das descrições de dona Alice que construí em minha imaginação um filme mirabolante onde minha mãe era a protagonista: arrozais a perder de vista ("lá embaixo da montanhinha"), plantações de chá e a vida pacata de interior; depois, a rotina glamourosa na capital Taipei, com carros e luzes por todos os lados, onde ela era chefe de departamento de uma fábrica; e finalmente o casamento com meu pai, a vinda ao Brasil, o começo sofrido e todas as conquistas que se seguiram.
Também não me lembro com precisão quando as histórias começaram a perder seu encanto. Lembro-me apenas de já ser adolescente e de que, um dia, as histórias pareciam todas repetidas. Já havia memorizado todas as peripécias de dona Alice, já sabia como terminavam as aventuras. Ficava irritada quando notava que estava prestes a ouvir a mesma história. Fazia cara de tédio e dizia, em tom de reprovação: "Ai, mãe, de novo?" Dona Alice imediatamente mudava de assunto.
Mas o tempo faz maravilhas e hoje entendo a necessidade que minha mãe tinha - tem - de contar e recontar tantos episódios de sua vida. As pessoas que habitavam suas histórias haviam ficado para trás, emolduradas num outro tempo, em sua terra natal. No Brasil, só ela sabia o tamanho das dificuldades que havia superado, num português aprendido a duras penas. A sua havia sido, de certa forma, uma jornada solitária e sem testemunhas. Mas ao colocá-la em palavras, tudo aquilo se tornava real novamente. Então percebi: ela não contava suas histórias para mim - contava para si mesma.
O que nem eu nem ela sabíamos na época é que, ao dividir suas histórias comigo, dona Alice me apresentava a um mundo a que eu dificilmente teria acesso de outra forma. Quando fui a Taiwan pela primeira vez, com 15 anos, visitei alguns lugares que ela descrevia tão vividamente em suas histórias. E a Taiwan da minha imaginação, construída a partir dos olhos de minha mãe, era muito mais bonita, mais simpática, mais colorida. Um presente que ninguém mais poderia ter me dado.
Hoje, quando minha mãe começa a contar suas histórias, sento para ouvir. E aproveito para fazer perguntas, porque com as perguntas certas, dona Alice sempre lembra de algum detalhe novo, da estampa do vestido, do tio que faltou à festa, da piada que estava sendo contada na ocasião. E o fato de já saber como a história termina não me incomoda mais. Afinal, quem não gosta de ouvir histórias com finais felizes?