terça-feira, 26 de abril de 2011

ODD

Da série "Confusões de dona Alice"

Quando eu era pequena, o detergente que usávamos em casa era o ODD, da Bombril. Ele vinha num frasco transparente, como esses de hoje, mas o líquido azul me deixava intrigada. Verde tinha cheiro de limão, amarelo de laranja... mas e azul, tinha cheiro de quê? No frasco dizia neutro, que para mim, naquela idade, era o mesmo que dizer nada.
Pois bem. ODD para nós era sinônimo de detergente, assim como Cândida até hoje é sinônimo de água sanitária. Recentemente fui descobrir que, para minha mãe, detergente e ODD eram muito mais que sinônimos.
Dona Alice estava lavando louça e, com a pia ainda cheia, notou que o detergente havia acabado. Enxaguando uma tigela, me pediu:
"Filha, vai lá no armário ver se tem mais o dedegente."
"Mais o que, mãe?"
"ODDgente", repetiu, me mostrando o frasco de detergente vazio. "Acabou ODDgente."
Para dona Alice, ODD e detergente não são sinônimos: são a mesma palavra. Anos depois de ter saído de linha, o ODD, quem diria, ainda conta com uma cliente fiel.



terça-feira, 12 de abril de 2011

armada e perigosa

O Campo Belo vem passando por uma transformação estranha esse último ano. Num período curtíssimo, uma pequena cracolândia se formou ao longo do córrego que deu o nome à antiga avenida Águas Espraiadas, atual Roberto Marinho. Passando pela região é fácil identificar os pequenos conglomerados, roupas nos varais improvisados, gente fumando crack. Não é raro ver motoristas parados no trânsito se assustarem com uma pessoa que, de repente, sai de dentro do córrego.
O resultado são mendigos dormindo em calçadas e garagens, pedintes nas entradas de supermercados e padarias, usuários de drogas se aventurando perigosamente por avenidas cheias de carros, num torpor inconfundível.
Vários moradores dessa nova comunidade que se estabeleceu no Campo Belo passam na frente do bazar diariamente. A maioria são homens feitos, que andam pelo bairro desocupados, pedindo comida, água, sacolas plásticas e trocados, num tom que fica entre o pedido e a ameaça.
Dona Alice morre de medo dessas situações, não apenas por ela, mas por todos na loja. Com ela e as balconistas são três mulheres tomando conta do bazar. A clientela é essencialmente formada por velhinhas, jovens mães e crianças pequenas. Até o cachorro é fêmea. Dona Alice tem experiência de sobra para justificar o excesso de zelo - nunca se sabe do que esses sujeitos são capazes.
Outro dia, um grupo de rapazes visivelmente sob efeito de drogas parou na frente da loja pedindo água. Minha mãe, já saindo de detrás do balcão, disse que não tinha. Os garotos insistiram. Dona Alice não se mexeu. Contrariados, passaram a xingá-la e a ameaçá-la com palavras impublicáveis.
Sozinha na loja, dona Alice não teve dúvidas: pegou a raquete amarela de matar pernilongos, daquelas encontradas por R$ 15 em qualquer cruzamento de São Paulo, e correu até a entrada.
- "Olha, é melhor vocês irem embora porque eu estou armada", disse, mostrando a raquete em punho. "E essa raquete TEM LUZ!"
Os marmanjos se entreolharam e, sem saber como reagir diante da chinesa que pretendia defender sua loja com uma raquete, saíram xingando. Depois que viraram a esquina, dona Alice se acomodou novamente no seu banquinho e voltou a ler seu jornal - mas deixou sua arma pertinho, só para prevenir.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

bênção

Meu pai foi o primeiro e único namorado de minha mãe. Ela o conheceu quando tinha 18 anos e, depois de cinco anos separados, enquanto meu pai tentava a vida do outro lado do mundo, deu um ultimato ao rapaz: ou ele voltava para Taiwan, eles se casavam e iam juntos para o Brasil ou eles se separavam e cada um ia para seu lado.
Meu pai, que nunca foi bobo, largou tudo e voltou para Taiwan para casar com minha mãe. Vieram juntos para o Brasil em 1973 e fizeram daqui sua casa.
Depois de 31 anos casados e uma vida inteira juntos, meu pai faleceu em novembro de 2004. De repente, dona Alice se viu sozinha, num país que não era o seu, sem família por perto. Ela, que nunca tinha tido medo de nada, de repente se viu com medo de tudo: do escuro, do silêncio, do presente, do futuro e, principalmente, da solidão.
Dona Alice tinha apenas 54 anos quando ficou viúva. Jovem e bonita, ela tinha tudo para voltar ao circuito. Nós mesmos nos perguntávamos se, passados alguns anos, minha mãe não deveria arrumar um namorado - não alguém que substituísse meu pai, mas alguém para dividir a vida com ela.
Minha mãe nem cogitava o assunto. Na cultura chinesa, quando a mulher se casa, ela passa a pertencer à família do marido. Não é só uma questão de sobrenome, mas de prioridades e funções. Dona Alice era casada com o filho mais velho dos meus avós, com uma função muito clara na hierarquia familiar. Suas responsabilidades como nora e cunhada mais velha continuariam, mesmo que meu pai não estivesse mais aqui. Era o que se esperava dela, era o que ela entendia ser seu papel. Para dona Alice, se envolver com outra pessoa seria uma traição. Quase como pedir para trocar de pai e mãe.
Um dia, não muito depois do falecimento de meu pai, minha avó chamou minha mãe num canto. Minha avó, que havia segurado bravamente as lágrimas ao ver meu pai debilitado na cama do hospital. Minha avó, que só foi comunicada da morte de seu filho uma semana depois do enterro, porque temiam que ela não resistisse à notícia. Minha avó, que tinha verdadeira adoração pelo seu primogênito. Essa avó sentou com minha mãe e disse baixinho, com sua sabedoria anciã:
- "Você ainda é jovem, vai viver muito tempo. A vida sozinha é muito triste. É importante ter alguém para dividir o futuro, para fazer companhia. Se você quiser casar de novo, pode se casar. Não importa o que digam. Você pode casar."
Dona Alice apertou as mãos enrugadas de minha avó entre as suas e abriu um sorriso de gratidão. Não porque tivesse considerado a possibilidade ou porque quisesse se casar de novo, mas pela generosidade de minha avó. Naquela tarde, só elas duas em casa, minha avó deixou claro que a felicidade de minha mãe era mais importante que os protocolos. E saber disso era um alívio.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

realocação de recursos

Dona Alice adora crianças. Mais velha de sete irmãos, ela cresceu cercada pela criançada. Quando conheceu meu pai, ganhou de brinde os nove irmãos dele, dos quais oito eram mais novos que ela. Com o tempo, os sobrinhos foram chegando. São 25 ao todo. Minha mãe carregou todos no colo, brincou com todos eles, enchia de presentes e sabe o nome de cada um sem hesitar, apesar de hoje serem todos marmanjos.
No bazar, dona Alice é hit absoluto com a criançada. Ganha beijos, abraços e até bolos de presente dos pequenos. E quando algum cliente anuncia o nascimento de um filho ou neto, minha mãe faz aquela festa, porque para ela não há maior motivo de comemoração do que a chegada de uma criança. Depois, sai discretamente, escolhe algum brinquedo da vitrine, embrulha escondido e coloca na sacola com as outras compras. Na hora que o cliente se despede, dona Alice conta no ouvido: "Deixei uma lembrancinha para seu filho/neto na sacola. Parabéns!" Difícil encontrar algum bebê no Campo Belo que não tenha um presente de dona Alice no baú de brinquedos.
Com essa adoração por crianças, é fácil entender por que minha mãe não se conforma quando alguém diz que não quer ter filhos. Para ela, são os filhos que dão razão à existência. É por eles que se trabalha, é por eles que se aguentam os percalços da vida, é por eles que se acorda todos os dias.
Um dia, uma amiga minha veio ao bazar para uma visita. Casada, 40 e poucos anos, nunca quis ter filhos. Adora os sobrinhos e os enteados, mas nunca quis ter os seus. Seu principal argumento era a conta bancária.
- "Mas dona Alice, é tão caro ter filhos hoje em dia. A criança mal nasce e já tem que ir para a creche. Depois vêm escola, inglês, natação, babá, viagens, festinhas... São muitos gastos!"
Minha mãe, com a lucidez e a paciência que lhe são tão peculiares, explicou por que aquela não era uma desculpa razoável.
- "Olha, eu tive três filhos. Eu e meu marido trabalhávamos muito para sustentar os três. Todos eles estudaram em escola particular, fizeram aulas de piano, natação, tênis, inglês e kumon. Os três usaram aparelho nos dentes e fizeram intercâmbio no exterior."
Minha amiga acenou com a cabeça, como se já tivesse feito os cálculos mentalmente.
- "Mas quando as crianças cresceram, não ficamos mais ricos. As despesas eram bem menores, mas mesmo assim não sobrava muito no final do mês. Para onde foi aquele dinheiro?"
A essa altura, outras pessoas na loja já haviam parado para ouvir a explicação.
- "Deus realocou para outra família, que está criando filhos pequenos e precisa do dinheiro mais que a gente. Eu não preciso mais, meus filhos estão crescidos, então Deus dá para outra família."
E com isso, dona Alice concluiu seu caso.
Minha amiga pode até não querer filhos. Mas para convencer dona Alice, vai ter que arranjar outra desculpa.