quarta-feira, 14 de setembro de 2011

a má educação

Dona Alice admite que em muitos momentos de nossa infância e adolescência teve dúvidas quanto à forma com que nos educava. Seus filhos não falavam mandarim fluente, tinham amigos em sua maioria brasileiros e não conseguiam sair do livro do jardim da infância nas aulas de chinês.
Essas dúvidas ficavam ainda piores quando voltava para Taiwan, porque lá era confrontada com o modelo de educação que teoricamente teria que ter adotado para nos criar. O problema é que, embora seu sotaque continuasse carregado, sua forma de pensar havia se tornado muito mais aberta e flexível ao longo dos anos no Brasil. Ela mesma sentia um certo choque cultural reverso quando retornava à terra natal: seu taiwanês, a língua que usava com a família, era hesitante; palavras em português apareciam aqui e ali; a rigidez com as crianças parecia um pouco extrema e algumas tradições se mostravam um tanto fora de lugar.
Foi numa de suas viagens que dona Alice percebeu o quanto estava distante da realidade que um dia deixara, e que suas irmãs, sobrinhos e sobrinhos-netos ainda viviam. Minha mãe é a mais velha de cinco irmãs (os dois únicos meninos da família morreram tragicamente durante a infância, um de meningite, outro atropelado por um ônibus), sendo que a caçula é 18 anos mais nova que ela. Com exceção de dona Alice, essa irmã caçula foi a única que saiu da cidade de interior onde nasceram: arrumou um emprego em Taipei, casou-se com um engenheiro e juntos se mudaram para Amsterdam, em meados da década de 90, para que ele terminasse seu doutorado. Mas, ao contrário de minha mãe, minha tia resolveu voltar, sem agregar nada do que havia aprendido no exterior à sua nova vida. Comprou uma casa no mesmo bairro em que cresceu e não sai da casa de minha avó por nada no mundo. Se houve alguma mudança, a temporada no ocidente serviu para que ela se agarrasse ainda mais às tradições e aos costumes.
Quando minha mãe e sua irmã caçula se encontram, ficam ainda mais evidentes as diferenças que tomaram corpo com o tempo. Numa visita recente de dona Alice a Taiwan, mesmo com minha avó hospitalizada, minha tia não deu uma trégua.
"Que educação é essa que você deu a seus filhos? Onde já se viu, deixar suas filhas soltas pelo mundo (a expressão em chinês é bem mais enfática), sem você saber o que elas estão fazendo? E seu filho? Como assim ele não foi para o Exército (em Taiwan, o serviço militar é obrigatório, tenha o rapaz pé chato, 15 graus de miopia ou um tio influente no governo)? Nenhum menino se torna homem sem passar pelo Exército."
As críticas de minha tia não cessam. Para ela, o fato de dona Alice ser a mais velha da família e ainda não ter netos é obviamente resultado da educação "solta" que ela nos deu. Eu e meu irmão ainda somos solteiros, minha irmã caçula é casada com um estrangeiro, que - horror dos horrores! - ainda por cima é careca. O material para a ladainha não acaba.
Dona Alice no começo procurava explicar. Mas depois de algumas tentativas frustradas, desistiu. Por muito tempo, ela mesma sentia um certo estranhamento em relação à educação que havia nos dado: viajávamos de mochila por aí, para lugares que ela nem sabia achar no mapa, gostávamos de comidas estranhas, trabalhávamos em profissões que fugiam do ideal chinês medicina-engenharia-direito, conversávamos numa língua que ela não dominava completamente. Quem eram essas pessoas que ela havia criado?
Mesmo assim, algo dentro de minha mãe diz que ela acertou ao nos educar com a medida certa de amor e autoridade, zelo e limites, flexibilidade e responsabilidade. Os netos, eventualmente, virão.


4 comentários:

  1. Li, com certeza sua mãe os educou da melhor forma!
    Vc é linda por dentro e por fora! Apesar de nao conhecer seus irmaos pessoalmente, creio que eles sao queridos como vc!
    Vcs sao amadissimos por Jesus :D
    Ainda quero, um dia, conhecer a "dona" Alice!
    bjao
    Jejé

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  2. Lili, pela foto, você já era ultra mega contente desde menina, a Ju já estava com pensamento nos negócios, com um sorriso bonachão de comerciante, e o Fu imaginando o próximo filme que ele poderia dirigir em L.A. Muito bom ! hehe Beijos, Fabi

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  3. Que foto mais fofa Lili! Adorei o post...como mae, sei bem que nao importa o que a gente faca, sempre fica com o coracao na mao sem saber se esta fazendo o certo com os filhos. Mas eu sei que a Dona Alice criou voces muito bem porque os filhos dela sao pessoas espetaculares :) beijinhos! Ana

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  4. Você sumiu, que pena. Adoro as suas histórias.

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