Dona
Alice continua em desvantagem quando se trata da prova "Quem tem mais
netos" na comunidade chinesa. Enquanto seus amigos contabilizam netos que
aumentam em progressão geométrica, dona Alice tem que se contentar em mimar a
Aretha, nossa golden retriever. Diz que não se importa, mas sempre conta com
uma certa inveja as façanhas dos netos de amigos. Um que começou a andar, outro
que já fala chinês fluente, outro que acabou de ser aceito na escola americana.
E a filha de fulano de tal, que acabou de dar o terceiro neto HOMEM para a família? Quanto orgulho!
Minha
mãe vibra com as histórias de seus amigos, sem deixar de sonhar com o dia em que
também poderá contar as façanhas de seus próprios netinhos.
Recentemente,
meu irmão foi aceito num programa de mestrado em Sorbonne, na França. As
universidades americanas são velhas conhecidas da comunidade - na minha época,
a medida do sucesso de uma família chinesa era ter um filho numa universidade
americana. Já as instituições europeias são um mistério. Pouquíssimos amigos do
círculo de minha mãe conhecem as universidades no Velho Continente. Ela mesma,
quando ouviu falar de Sorbonne pela primeira vez, fez cara de ponto de
interrogação. "Sorbonne?", perguntou. "Como 'suborno'?"
Quando
soube do calibre da instituição, quis sair contando por aí. "Minha
vontade é alugar um carro com um alto-falante e avisar todos os meus
amigos!", comemorava. Mas qual a graça de contar uma novidade desse
tamanho se as pessoas para quem contaria não tinham nenhuma referência sobre
ela?
Dona
Alice não teve dúvidas: foi descobrir como se falava Sorbonne em chinês. Mas
ciente de que só aquele nome não seria capaz de gerar o espanto e admiração que
esperava pela façanha de seu filho - afinal, ela comemora façanhas muito
menores dos netos de seus amigos! -, pediu para meu irmão listar algumas
pessoas importantes que já haviam passado por lá. Meu irmão citou alguns nomes. Para não esquecer, dona Alice tomou nota.
Além
da grafia de Sorbonne em chinês, estão na lista: CATOSO (Fernando Henrique
Cardoso), Gioqim Barbosa (Joaquim Barbosa) e Vitor Hugo. Em português e em
chinês, para poder se orgulhar nas duas línguas.
E
enquanto dona Alice conta das conquistas de seus filhos, nós nos orgulhamos dela por motivos que vão muito além da entrada numa
universidade. Com a palavra, meu irmão:
"Hoje
faz exatamente 1 mês e 20 dias que cheguei em Paris.
Antes
de embarcar para Europa, no aeroporto, fiquei me perguntando se sentiria
saudades do Brasil. Afinal de contas, em tempos de Internet e telefones
celulares, onde todo mundo e o mundo todo anda conectado o tempo inteiro, achei
que essa palavra tão única da língua portuguesa tinha perdido um pouco da sua
força: ficou com saudades, basta ligar. Pronto, matou a saudade.
Para
minha total surpresa, aconteceu justamente o contrário. Fazia muito tempo que
eu não sentia tanta falta da minha família, dos meus amigos, da comida, do
clima, das referências, das conversas e da cultura que deixei no Brasil. Dá até
vergonha de falar isso, sendo que não se passaram nem dois meses. Além disso,
não é que eu esteja em Tristão da Cunha, a ilha mais isolada do mundo. Eu estou
em Paris, a cidade mais visitada do mundo. A única que pode ser chamada de Luz.
E
ainda assim, a saudade do Brasil faz tudo por aqui parecer meio escuro. Às
vezes, escuro até demais.
Não
por acaso, fiquei pensando na minha mãe. Em como teria sido pra ela ter saído
de Taiwan para ficar indefinidamente no Brasil, sem prazo para voltar. Como
será que ela se sentia no Brasil quando pensava na família, nos amigos, na
comida, no clima, nas referências, nas conversas e na cultura que tinha deixado
naquela minúscula ilha perdida no Pacífico? Sem Internet. Sem telefone.
É
um absurdo sequer cogitar qualquer comparação. Eu moro sozinho em um
apartamento, minha mãe dividia com meu pai um quartinho nos fundos de uma casa
na Vila Mariana. Eu estou a apenas 12 horas de avião da minha vida em SP; ela
estava a mundos e mundos de distância de tudo que ela conhecia. Eu cheguei
sabendo o idioma; Dona Alice chegou falando “sim”, “não”, “por favor” e
“obrigado”. Eu vim para cá em busca de um simples diploma; minha mãe, em busca
de uma nova vida.
Porém,
eu sei que em breve, a saudade que eu sinto do Brasil vai diminuir e que esse
período de adaptação vai ser apenas isso: um período de adaptação. O que eu não
sei – e é algo em que penso cada vez mais frequentemente desde que cheguei aqui
– é se minha mãe ainda está vivendo este período. Tudo indica que sim, caso
contrário minha irmã não teria tantas histórias emocionantes e engraçadas para
contar neste blog e o Bazar da Dona Alice não seria o lugar tão especial que é
para tantas pessoas.
E
se este for o caso, se de fato minha mãe vem vivendo este período tão difícil
de adaptação há quase 40 anos, então eu confesso que ela conseguiu algo que eu
achava impossível de acontecer: fazer com que eu a admirasse e a respeitasse
ainda mais."